domingo, janeiro 25, 2009

Arquitetura da Destruição

Vá lá que Oscar Niemeyer já ultrapassou um século de vida, massss... é de causar estupor o artigo publicado esta semana pelo jornal Correio Braziliense. Assinado pelo arquiteto, o texto é uma auto-defesa em que Niemeyer procura justificar seu polêmico projeto de construir, em plena Esplanada dos Ministérios, a monumental (e, com certeza, dispendiosa) Praça da Soberania. Entre outras coisas, Niemeyer acusa os críticos de, mesmo não entendendo nada de arquitetura, usar os jornais brasilienses para "aparecer", criticando a nova empreitada sem compreenderem sua importância.

Projetada para ser construída ao lado da Rodoviária do Plano Piloto e próximo ao recém-inaugurado Complexo Cultural da República, onde hoje há um imenso gramado emoldurado pelos edifícios ministeriais, a praça abrigaria o Memorial dos Presidentes da República (?!?) e um Monumento ao Cinquentenário de Brasília, a ser comemorado em 2010.

Para quem está acostumado a ouvir falar sobre "um dos maiores gênios do século" como "o último comunista", é algo estranho verificar a maneira com que Niemeyer e os sucessivos governos do Distrito Federal concordam sobre a necessidade de inaugurar novas e sempre grandiosas obras que "complementem o plano original" que é Brasília.

As obras do "último comunista" nunca se destinam a qualquer uma das cidades-satélites, onde se reúnem mais de 1 milhão de trabalhadores (de todas as classes sociais) que tornam Brasília real, e não apenas o cartão-postal que é o Plano Piloto.

Pelo tom de meu texto, dá para notar que sou dos que consideram desnecessária essa tal praça e seu chifre de concreto de "100 metros de altura". Prefiro o gramado onde, algum dia, ainda pretendo jogar uma bolinha com os amigos (nestes quatro anos de Brasília, nunca vi ninguém fazendo isso, mas imagino que não seja proibido). Só que, como não entendo lhufas de arquitetura e o centenário arquiteto dá a entender que eu, cidadão comum, não tenho direito a escolher entre grama e concreto armado (mesmo sendo um dos tantos que vai pagar), reproduzo abaixo o texto da também arquiteta e professora da Universidade de Brasília (UNB), Sylvia Ficher, publicado originalmente no site dedicado à arquitetura e urbanismo mínimo denominador comum.


Criador Versus Criatura - Sylvia Ficher

Coitada de Brasília, Oscar Niemeyer não gosta mais dela. Infelizmente, não dá mais para ignorar a realidade que aí está. Infelizmente, não dá para encontrar outra explicação para o estrago que o grande arquiteto federal vem fazendo, já há algum tempo, em sua principal obra, aquela que lhe rendeu suas mais altas honrarias, aquela que lhe garantiu uma posição ímpar no ranking dos arquitetos do século XX.

Tudo começou devagarzinho, primeiro a Praça dos Três Poderes sendo comida pelas bordas com o Panteão da Pátria, predinho sem graça e sem uso, verdadeira câmara escura que só serve para atravancar o espaço e impedir a vista… O Superior Tribunal de Justiça, a Procuradoria Geral da República e o Anexo do Supremo vieram na seqüência, bem mais pretensiosos e ainda mais fora de escala, com suas formas gratuitas e suas metragens gigantescas - afinal, quantos mais metros quadrados, melhor o honorário…

E assim, de projeto em projeto, cada vez mais intervindo na escala monumental da cidade, cada vez mais rompendo a graça e elegância da Esplanada dos Ministérios, chegou a vez do Complexo Cultural da República, com sua nanica biblioteca - nanica, talvez, por conta de um inconsciente desinteresse por edifícios úteis - e sua cúpula-museu - nem tão cúpula assim, menos ainda museu. De quebra, a bela Catedral Metropolitana perdeu sua ambientação urbana e, para piorar, foi estrangulada pela gravata de concreto que lhe dá uma rampa sem rumo ou razão.

Há coisa de dois anos, uma robótica pomba - isto mesmo, uma pomba! - seria o principal elemento da praça que, segundo o arquiteto, estava faltando no Plano Piloto: a Praça do Povo. Repetindo a ausência de paisagismo do vizinho complexo cultural, a cidade iria ganhar mais um árido calçadão, mais um inóspito vazio onde desde sempre havíamos convivido sem maiores problemas com um modesto gramado… E lembremos o que fora previsto para o local por seu legítimo idealizador: um espaço desimpedido destinado a atividades ocasionais, como paradas militares, desfiles esportivos ou procissões; nas próprias palavras Lucio Costa, "o extenso gramado destina-se ao pisoteio".

Ao que parece, Oscar Niemeyer se esqueceu da sua dileta pomba, aquela que, como afirmara veementemente à época, deveria ser a sua derradeira contribuição para Brasília e sem a qual o seu *opus* brasiliense estaria inconcluso. E parece que se esqueceu também do "povo"; agora, no mesmo local a praça será da "soberania". Lá deverá ser erigido um prédio imprescindível, seja para o povo, seja para a soberania: o Memorial dos Presidentes. E um Monumento ao Cinqüentenário de Brasília, a ser comemorado em 2010; para que ninguém deixe de entender a sua complexa simbologia, nada melhor do que um chifre de concreto, de cem metros altura, descrito como obra de grande ousadia tecnológica… Tanta construção apenas para encobrir um estacionamento subterrâneo… De quebra, na maquete eletrônica (incidentalmente, o novo tipo de empulhação arquitetônica que nos oferece o maravilhoso mundo da informática) é contrabandeado um antigo projeto vetado pelo IPHAN por desrespeitar em muito o gabarito estabelecido legalmente para o local - uma altíssima cobertura curva para abrigar shows de música popular, a qual implacavelmente lembra "as curvas do corpo da mulher amada", só que com redondinhos seios de silicone e já buchuda.

Coitada de Brasília. Afinal, apesar de tombada, há uma portaria do IPHAN que autoriza tudo isso: "Excepcionalmente, e como disposição naturalmente provisória, serão permitidas quando aprovadas pelas instâncias legalmente competentes, as propostas para novas edificações encaminhadas pelos autores de Brasília - arquitetos Lucio Costa e Oscar Niemeyer - como complementações necessárias ao Plano Piloto original". (Portaria nº 314, 8/10/1992, Art. 9º, § 3º ).

Tal qual o bordão de uma famosa personagem de programa humorístico, "Oscar Niemeyer pode!!*"

Coitada de Brasília. Para Oscar Niemeyer, ela está aí tão somente para manter ocupado o seu escritório sem risco de concorrência. Coitada de Brasília, cujo plano piloto foi escolhido transparentemente por concurso público, agora sujeita a decisões tomadas nos gabinetes de seus governantes.

Coitada de Brasília, fadada a ser conhecida daqui por diante não mais como
Patrimônio Cultural da Humanidade, porém como Capital Mundial dos Unicórnios.


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