"Em mais um ou dois anos, todos os que tivessem ambições filosóficas e um desejo consciente de desenvolver sua inteligência poderiam aprender como utilizar as drogas de maneira efetiva. O contexto seria educacional. Cursos básicos em currículos das escolas serviriam para treinar os estudantes em como ativar seus próprios sistemas nervosos de acordo com as instruções dos fabricantes".
Embora colocado no papel no início dos anos 1980, o devaneio acima era uma reflexão a respeito da ingênua disposição de espírito com que muitos haviam encarado os distantes anos 1960, que muitos acreditavam ser o advento da "imaginação no poder".
Kennedy não havia sido assassinado. Colônias africanas lutavam por sua independência. Milhares de jovens ocidentais pareciam encontrar sua voz junto ao rebelde rock´n´roll. A geração dos baby-boomers (nascidos após o fim da Segunda Guerra Mundial) logo começaria a reivindicar seus postos. A Guerra Fria esquentava: Hiroshima Meu Amor. A cultura de massas se consolidava. E a política do êxtase surgia.
Junto a tudo isso, muitos passaram a defender publicamente a tese de que as drogas seriam a "chave" para as pessoas interessadas acessarem uma forma superior de inteligência. E, inicialmente, não eram os hippies maluco-beleza os que a defendia. Ao contrário. Eram os que, hoje, chamaríamos "formadores de opinião" ou "analistas qualificados".
A declaração com que abro este texto, por exemplo, é de um ex-professor de psicoterapia da prestigiada universidade norte-americana de Harvard.
Um jovem profissional careta que já fora cadete da conservadora academia militar de West Point e que tinha um futuro promissor a sua frente, até ter sua primeira experiência com os "cogumelos sagrados" mexicanos, ou seja, com a psilocibina. Só então Timothy Leary se deu conta de que, mesmo do alto de toda sua erudição, só conseguia acessar a uma ínfima parcela de seu potencial criativo e emocional. E se tornou o chamado "papa da lisergia", uma das figuras mais controvertidas dos loucos anos 1960.
"Nas quatro horas que se seguiram a minha primeira experiência com os cogumelos sagrados, aprendi mais sobre o cérebro, a mente e suas estruturas do que nos anos precedentes, enquanto aplicado psicólogo", conta Leary no livro de memórias Flashbacks: LSD, a Experiência Que Abalou o Sistema. Um livro que é um verdadeiro "quem é quem" da contracultura e das quatro últimas décadas do século passado, até que os yuppies, a cocaína e o império do consumismo varressem da face da terra qualquer expectativa quanto ao ser acima do ter.
"Naquele instante, sob efeito dos cogumelos, aprendi que o cérebro é um biocomputador subutilizado, contendo bilhões de neurônios cujo acesso é vedado. Aprendi que a consciência normal é apenas uma gota dentro de um oceano de inteligência, que a consciência e a inteligência podem ser expandidas sistematicamente, que o cérebro pode ser reprogramado e que o conhecimento de como o cérebro opera é uma das mais importantes descobertas científicas de nosso tempo", lembra Leary, atraído desde o primeiro momento pela possibilidade de "reprogramação do cérebro".
A reprogramação, ou re-imprinting (reimprimir) de novos sistemas de crenças e atitudes, defendia Leary, permitiria as pessoas reprogramarem suas estruturas psíquicas para lidar com traumas e eventuais problemas que, de outra forma, não conseguiriam sequer acessar conscientemente. O próprio Leary destaca que, cinquenta anos antes, Freud frisara que uma conversa no consultório médico jamais conseguiria reproduzir a intensidade original da fixação emocional infantil (?), sugerindo que estímulos fisiológicos (isto é, químicos) eram necessários para libertar as amarras neurológicas.
Além do mais, antes mesmo de mesmo de experimentar drogas, Leary já defendia que o psicólogo deveria trabalhar com seus pacientes em situações de vida real, como um naturalista em campo - "devemos tratar as pessoas como elas são naturalmente e não a partir da imposição de um modelo médico ou qualquer outro" -, nos envolvendo e nos engajando nos eventos estudados, sempre preparados para mudarmos tanto ou mais do que os indivíduos que estamos atendendo".
Daí não ter sido espantoso que sua primeira experiência para além dos muros da universidade tenha acontecido em um presídio.
Ainda contando com o aval da universidade de Harvard, Leary levou a cabo a experiência de administrar ácido lisérgico a presos. Segundo ele, quase todos os que participaram do experimento não voltaram a reincidir no crime.
"Parecia que havia duas forças muito grandes que impeliam os detentos para a mudança: a primeira era a percepção de novas realidades que os ajudava a reconhecer a existência de outras alternativas além da vida de ladrão versus tira. A segunda, a empatia gerada em meio aos membros do grupo, que os ajudava a manter sua opção por uma nova vida".
Na mesma época, Leary tomou conhecimento da existência de uma rede internacional de cientistas e intelectuais que estavam experimentando a psilocibina, o LSD e a mescalia (fora, óbvio, a maconha). E, mais uma vez, não se tratavam de malucos-belezas. "Muitos desses homens e mulheres eram psiquiatras que haviam experimentado pessoalmente uma ou mais drogas e esperavam encaixá-las em alguma espécie de tratamento médico".
Infelizmente, nos anos subsequentes, Nixon chegaria ao poder e os Estados Unidos encabeçariam uma guerra infrutífera contra as drogas. Além disso, o debate conservador e rasteiro em reação à aparente "libertinagem" comportamental encobriu as implicações éticas e científicas do uso individual de substâncias alteradoras da percepção, uma prática comum a todas as sociedades ao longo da história humana.
Ao contrário do que acreditava Leary e outros defensores do indíviduo dispor de seu organismo e sistema nervoso, desde que sem causar mal a terceiros, a repressão às drogas inviabilizou o uso controlado de tais substâncias, além de provocar milhares de mortes e o desperdício de milhões de dólares, sem com isso impedir que o narcotráfico se tornasse um dos negócios mais rentáveis do último século. Os resultados da pesquisa conduzida pelo grupo de Leary na Prisão Estadual de Concord, por exemplo, jamais foram colocados à prova.
Ainda assim, Leary seguiu por quase três décadas provocando e testando os limites do sistema. E ora protagonizando, ora testemunhando o melhor de seu tempo. Pelas 400 páginas de sua autobiografia, desfilam escritores, intelectuais, artistas, músicos, ativistas e políticos como Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Aldous Huxley, Willian Burroughs, Arthur Koestler, Marshal McLuhan, Ralph Metzner, John Lennon, Charles Manson, agentes da CIA, do FBI, Panteras Negras e os integrantes da improvável Confraria do Amor Eterno - "gente bronzeada que distribuía praticamente de graça um fumo forte e um ótimo ácido [...] um bando de vinte homens e mulheres, foras-da-lei, que criaram uma lenda global e então desapareceram silenciosamente, sem jamais serem julgados, embora fossem conhecidos e caçados pela polícia".
"Com o tempo, começamos a perceber que algumas pessoas se sentem mais inclinadas a mudanças pessoais que outras. A maior parte de nossos voluntários voltaram de suas experiências dispostos a tornar a expansão da consciência parte de suas carreiras, de suas vidas. Infelizmente, para nosso degosto, quanto mais velha a pessoa, maior é seu medo da experiência visionária".
Foram, segundo o próprio Leary, sete décadas de mudanças rápidas, durante as quais ele praticou o "surf em cada uma das ondas dos século XX com algum sucesso e diversão", numa louca trajetória que o levou da casa no subúrbio, bebendo martinis, à prisão por tráfico de drogas. E que passou inclusive pela fase de entusiasmo com a tecnologia, principalmente dos computadores.
Com o tempo, como não poderia deixar de ocorrer, Leary foi cada vez mais associado à figura do "tio doidão", seu discurso desqualificado e, em muitos momentos, ele próprio adotou posturas muito próximas ao charlatanismo. Ainda assim, reler Flashbacks pela terceira vez em quase 20 anos ainda provoca em mim boas e pertinentes dúvidas quanto a eficácia do combate às drogas
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