Apesar dos problemas persistentes que vez por outra surgem na mídia, a Colômbia já esteve muito pior. É o que nos lembram obras como o filme PVC ou os desenhos, telas a óleo e aquarelas pintadas por Fernando Botero entre os anos de 1994 e 2004, expostos na mostra Dores da Colômbia (e que ilustram este post), que percorreu várias capitais brasileiras. Só que nenhuma obra artística dedicada ao registro do período negro da história colombiana da segunda metade do século passado cala tão fundo quanto o livro Notícias de Um Sequestro, escrito por um dos maiores nomes da literatura universal de todos os tempos, o colombiano Gabriel Garcia Márques.
Jornalista destacado antes de se consagrar como um dos maiores expoentes do chamado realismo fantástico, Garcia Márques dá impressão de se conter a fim de se ater exclusivamente aos fatos. Ocorre que, como o próprio autor afirma em dado momento, o dia a dia colombiano, principalmente durante tempos incertos, está muito além do que o mais imaginativo artista pode conceber. Até porque, se alguém ousasse botar no papel a imagem preconcebida de sequestrados e sequestradores jogando dominó ou xadrez, ou de bolos sendo servidos no cativeiro para comemorar a notícia da breve libertação de uma vítima soltura, seria acusado de ingênuo ou sensacionalista. Garcia Márques, contudo, está amparado no que de fato aconteceu e lhe foi contado pelos próprios protagonistas do jogo e, posteriormente, do livro.
Garcia Márques se incumbiu de escrever Notícias em 1993, por sugestão de Maruja Panchón, que passou seis meses nas mãos de sequestradores a serviço do narcotraficante Pablo Escobar e seu grupo, autodenominado Os Extraditáveis (por razões explicadas no livro de 318 páginas publicado pela editora Record). Com uma prosa arguta e objetiva, o escritor já havia avançado bastante quando se deu conta de que era impossível desvincular o sequestro de Maruja e sua assistente Beatriz, de outros oito que aconteceram na mesma época. Vistas em conjunto, as vítimas, na maioria, jornalistas, compunham um grupo de "pessoas muito bem escolhidas", capazes de servir como elemento de pressão para que o governo aceitasse negociar com os grupos terroristas condições especiais para que os criminosos se rendessem e tivessem suas vidas asseguradas.
Felizmente, a Colômbia parece ter conseguido superar (não totalmente) o mais difícil. Meu próprio amigo surfista prego brasiliense Carlos Leite visitou o país há coisa de três anos e disse que se sentia mais seguro andando pelas ruas de Bogotá do que em São Paulo. Ainda assim, Tal como Garcia Márques disse a respeito dos depoimentos que lhe deram várias pessoas envolvidas direta ou indiretamente com os fatos narrados, seu livro salvou do esquecimento o drama bestial que, por desgraça, foi apenas um episódio do holocausto bíblico em que a Colômbia se consumiu por mais de vinte anos. E que muitos países, como Brasil e México, ainda se consomem.
"Em Medellín, somente nos dois primeiros meses de 1991, tinham sido cometidos mil e duzentos assassinatos - vinte diários - e um massacre a cada quatro dias. Um acordo de quase todos os grupos armados havia iniciado a escalada mais feroz de terrorismo guerrilheiro da história do país e a cidade onde se escondia o temido e procurado Pablo Escobar foi o centro da ação urbana.Quatrocentos e cinquenta e sete policiais foram assassinados em poucos meses. O Serviço Especial estimava que duas mil pessoas das comunidades estavam a serviço do narcotráfico e muitas delas eram adolescentes que viviam de caçar policiais. Por cada oficial morto recebiam cinco milhões de pesos. É provável que o mais colombiano dessa situação fosse a assombrosa capacidade do pessoal de Medellín para se acostumar com tudo, bom ou mau, demonstrando um poder de recuperação que, talvez, seja a fórmula mais cruel da temeridade".
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