quarta-feira, janeiro 11, 2012

Desbunde libertino



A cidade está fora do meu quarto, mas eu estou dentro da cidade. A hierarquia sensível da realidade é a seguinte: primeiro meu quarto, depois a cidade lá fora. Aí vem o país e o mundo, notícias impressas no jornal intacto jogado no chão. [...] Corrige-se: primeiro meu corpo.

Seu corpo. Seu quarto. Eis as duas principais fronteiras a delimitar os interesses imediatos (ou a egotrip, se preferirem) de Ricardo, o protagonista dos dois primeiros romances de Reinaldo Moraes, Tanto Faz (1981) e Abacaxi (1985). Esgotados e há muitos anos só encontrados em sebos, os dois títulos foram reunidos em um único livro de bolso e relançados ano passado pela Companhia das Letras, conquistando novos leitores.

A trama de um dos poucos "clássicos" da literatura de "contracultura" publicado em Pindorama: diante dos sinais inequívocos de que, gradual ou instântaneamente, o regime militar (1964-1985) estava por cair, a personagem, um paulistano classe-média cansado do clima político e cultural barra-pesada do final da década de 1970, dá uma banana pro trabalho, pra carreira, pra luta, pros milicos, pra literatura de gabinete e se manda pra Paris onde, graças a uma bolsa de estudos, passa dois anos experimentando toda e qualquer substância lícita ou ilícita que lhe abra "as portas da percepção". E intercambiando-se com garotas de nacionalidades diversas, sobretudo conterrâneas que, como ele, aproveitam a ordem e progresso à moda do Velho Continente para se libertar dos pudores conservadores terceiro-mundistas. A pesquisa etílica-alucinógena-sexual é concluída em NY, onde a personagem "dá um pulo" antes de retornar a Sampa. Ou seja, o tipo de "drama humano" dificilmente adotado nas aulas de literatura brasileira.

Ícones da chamada "literatura marginal" produzida no país durante o período do desbunde (ressaca dos 60 na antesala da "década perdida" yuppie), Tanto Faz e Abacaxi revelaram aos leitores, na forma de uma prosa livre de amarras e preconceitos, a semente da teoria autoral revelada por Reinaldo Moraes em 2007 e que resultou no best-seller de quase 500 páginas e ritmo frenético, Pornopopéia (2009): não se faz boa literatura sem maus sentimentos. E sem uma boa dose de humor e muita libertinagem, faltou ele acrescentar. Pois vejamos:


"Atravessando em linha reta a noite americana, me bateram vários momentos de lucidez cósmica, instantânea compreensão da minha presença no mundo e do mundo em mim. Aos meus olhos eu era um santo grogue com o pé no sapato, na calçada, no espaço. Um santo sem milagres nos bolsos vazios. Na boca o travo azedo de tudo que eu tinha bebido, cheirado, fumado, comido, vomitado, mais o veneno do ressentimento por ter sido expulso do loft-paradise da morena milionária. Buáááááá!"
Anti-herói apolítico e amoral, Ricardo não parece se importar com nada que não seja uma maneira de extrair algum prazer da vidinha besta que o sistema tem a oferecer.


"Mas que porra: onde está escrito que a história tem que meter seu estúpido bedelho na minha anônima vidinha? Eu quero é o mel da vida, melodia e ritmo na vitrola, namoro, vadiagem. Flânerie, noites brancas, manhãs de sono no quarto escuro. Drogas, birita. Quem precisa de história? Tirem essa puta velha e assassina daqui! [...] Meu saco pra política anda a zero"

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