"Abandonar os preconceitos não é deixar de acreditar em valores"
A frase acima foi pinçada de uma excelente crítica do jornalista econômico português Tiago Freire sobre o sucesso mundial de Lady Gaga. No artigo Este Mundo Está Gagá, publicado na revista musical portuguesa Blitz, de setembro do ano passado, Freire conclui que a loira norte-americana, muito mais famosa por suas excentricidades midiáticas do que pelo conjunto de sua obra, é um "embuste" só relevante enquanto produto.
"Um mito global, supostamente musical, construído à base de 20 e poucas canções, nenhuma delas inovadora, nenhuma delas particularmente memorável, nenhuma delas merecendo sequer uma linha de rodapé na história da música pop"
É isso! Do alto de minha ignorância, mas dotado de um mínimo de bom-senso obtido graças a uma já considerável trajetória auditiva, várias vezes me questionei como uma artista cujo cartão de visita é a música Just Dance (primeira faixa de seu primeiro cd, cheio de modulações e sintetizadores) chega a se tornar o fenômeno mundial que a loira esquisita se tornou. A resposta, minha mesma trajetória como espectador me deu. E, lógico, ela é tão óbvia quanto o jornalista português aponta.
"Como é de pop que falamos, é evidente que nem tudo é (e muitas vezes, bem pouco é) acerca da música. É acerca da imagem, acima de tudo [...] Como tal, a única coisa que peço é: falem de Gaga que ela adora - e é para isso e só para isso que ela existe, mas não tentem legitimar uma gritante falta de originalidade e de talento através de apreciações musicais. Enquanto música, esta senhora é uma inexistência e sua relevância, por enquanto, é apenas enquanto produto. Assim como a Coca-Cola, que também vende camisetas, canetas e agendas com sua logomarca, embora nunca ninguém tenha dito que a Coca-Cola saiba cantar".
Embora possa soar a polêmica gratuita, a afirmação de Freire de que falta a Gaga originalidade e talento é precisa. Só deixando claro que o jornalista se refere à qualidades musicais, pois talento para criar factóides e se manter à tona a loira tem de sobra. De resto, quando vejo alguém dizer que Gaga trouxe alguma inovação para a música duas hipóteses me vem à mente: ou a pessoa tem menos de 25 anos ou então demorou muito a se interessar por música e pela cultura pop. Qualquer que seja o caso, acrescento que esta pessoa desinformada nunca se interessou pelo que a antecedeu e, portanto, não tem muitas referências.
Os vídeos de Gaga? Madonna só se tornou o que é graças ao surgimento da MTV e à consequente valorização e aprimoramento da linguagem audio-visual. Isso há 30 anos, quando poucos levavam à sério aquelas evoluções de ginástica aeróbica que, hoje, se confunde com dança. Gaga hoje se beneficia da evolução dos video-clips, embora o mérito maior seja do diretor e de sua equipe.
Atitude? Pesquise as biografias de Ella Fitzgerald, Nina Simone, Janis Joplin, Debbie Harry, Patti Smith, Chrissie Hynde, Elza Soares, Elis Regina e de tantas outras que, sem contar com as graças de produtores, tiveram que ralar muito para conquistar o direito de se dizerem cantoras. Orfã, Ella chegou a trabalhar como vigia de um bordel. Hoje, a Primeira Dama da Canção, como é chamada, é considerada a maior cantora do século XX. Para isso, no entanto, passou 59 anos sobre os palcos e em estúdios de rádio e de gravação. Já Gaga, como bem lembra Tiago Freire, passou a ser apontada como "a nova diva do pop" (no que já foi substituída por Adele, apesar de tudo, muito mais legítima) tendo lançado um único disco mediano, do qual eu, com alguma boa vontade, numa festa tocaria apenas Beautiful, Dirty, Rich ou The Fame (talvez também tocasse Poker Face para agradar aos amigos da mesma faixa etária já que este é o sucesso mais anos 80 das últimas estações e, como bem sabemos, o público gosta de aplaudir sua própria memória, daí o sucesso das festas revivals)
Ah, mas Ella, Nina, Janis e Elis estão ultrapassadas e construíram suas carreiras em um tempo em que "BASTAVA saber cantar bem", dirá a hipotética pessoa que considera Gaga inovadora. Já Debbie, Patti e Chrissie tomaram parte de uma cena em que dancinhas coreografadas não eram muito bem recebidas por seus público-alvo. Sinto informar, mas Gaga também não passa com louvor no quesito originalidade. Além de seguir em suas apresentações e vídeo-clips a trilha pavimentada por Madonna, a postura cool e performática lembra Grace Jones.
E por falar em Grace Jones, eis aí alguém realmente subestimado. O que, em última análise, pode ser um sintoma de como nos tornamos mais indulgentes já que, há três décadas, artistas muito melhores que Gaga não costumavam sequer ser merecedoras de críticas ou textos como este e, hoje, são lembrados por bem poucos. Em geral, por aqueles mesmos chatos que não enxergam nada demais em Gaga. Sinal dos tempos pop?
1 - (Talvez você, como eu até há bem pouco tempo, não tenha tido a curiosidade de ouvir os discos de Lady Gaga, sendo-lhe suficiente tomar conhecimento do último modelito de roupa ou penteado criado por seus estilistas. Se achar oportuno ouví-lo para tirar suas próprias conclusões, clique aqui)
2 - O artigo de Tiago Freire é uma resposta a um texto publicado um mês antes pela mesma revista portuguesa, escrito por Mary Rose, que assume, "orgulhosamente", ser uma little monster (monstrinha), que é como Gaga se refere aos seus fãs ("uma forma de diminuí-los emocionalmente e dar-lhes uma causa com que se identificar (o desajuste)", sustenta Freire). "A Mother Monster [Gaga] mudou a forma como encaro a Vida", aponta Rose, lembrando-no de que discussões como esta vão muito além do que parece já que vivemos todos sujeitos à cultura pop. "Gaga não é simplesmente um fenômeno pop que irá desvanecer ao longo do tempo. Não, ela representa a mudança, a esperança de um mundo sem preconceitos nem desigualdades, um mundo onde a diferença é aceita e valorizada, um mundo melhor. É provável que tudo isto não passe de um sonho, mas tenho a certeza que todos os Little Monsters estão empenhados em realizá-lo!" (tive uma demonstração deste mundo mais tolerante no último reveillón, durante uma festa estranha, com pessoas esquisitas, que não valorizaram meu set list composto por faixas lado B pouco conhecidas. Como disse, as pessoas amam aplaudir sua própria boa memória)
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