Dois filmes em cartaz no Cine Liberty, em Brasília, lançam novos olhares sobre o velho tema das sangrentas ditaduras latino-americanas da segunda metade do século passado. E, por tabela, reforçam a tese de que, mesmo com poucos recursos, é possível fazer um excelente longa-metragem desde que se tenha um bom roteiro em mãos - enquanto o contrário só muito raramente acontece.
Indicado para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, No (do espanhol não) é o mais divertido, instigante e tecnicamente bem-resolvido dos dois. Dirigido por Pablo Larraín (do também ótimo e inusitado Tony Manero), é uma coprodução chilena, francesa e norte-americana baseado em uma obra do escritor chileno Antonio Skármeta (O Carteiro e o Poeta). Premiado no Festival de Cannes e estrelado por Gael Garcia Bernal, o filme trata do referendo convocado em 1988, pelo governo militar chileno, que tinha a a pretensão de, com o resultado das urnas, legitimar perante a opinião pública internacional o mandato do general Augusto Pinochet, que tomou o poder após um golpe de Estado, em 1973, eliminando violentamente parte dos que se opuseram ao seu governo.
Descretentes de que o regime aceitasse uma eventual derrota e certos de que parte dos chilenos não teriam coragem ou interesse de votar pela destituição de Pinochet, líderes da oposição aceitam participar da campanha prévia ao referendo apenas para firmar posição e para aproveitar o espaço de rádio e tv para, dentro do possível, denunciar a violência institucional, a censura e a desigualdade então existente, mas que não podiam ser noticiadas. Para isso, apostam em um discurso carregado de ideologia, mas pouco atraente para as massas. Até que um jovem publicitário, interpretado por Gael, é convidado a opinar e acaba se engajando na campanha do Não a Pinochet e ao regime.
É do choque e do resultado do trabalho conjunto desenvolvido pelo "comercial" e apartidário publicitário, os radicais de esquerda e os líderes pragmáticos que irrompe a força do filme e seu ineditismo. Destaque para o complexo papel de Gael, cuja personagem não é nem o salvador da pátria, nem um alienado político. Embora aposte todas suas fichas na capacidade de convencer os chilenos a votarem pela não permanência de Pinochet na presidência desde que usando as mesmas bem-sucedidas técnicas de marketing que emprega para vender refrigerantes, o jovem conhece muito bem as mazelas da ditadura: ele próprio teve que deixar o país e se exilar no México devido à resistência política de seu pai (que só é mencionado). Conflito que, a certa altura, Gael sugere com um olhar, quando sua personagem é obrigada a se separar do filho de quem cuida quase que sozinho. Nessa cena, fica a sugestão de que a tentativa de não tomar partido e permanecer alheio, brincando com o trenzinho do filho enquanto fatura alto servindo ao patrão governista, pode não passar de uma tentativa de escapismo.
E por falar no patrão, o dono da agência de publicidade, há entre os vários bons diálogos um que merece uma reflexão no caminho de volta para casa: a declaração do chefe - que, além da agência, comanda a campanha do sim à permanência de Pinochet no poder, representando além de uma publicidade que, embora ainda eficaz, começa a ficar ultrapassada, assim como o próprio regime militar e dos carcomidos, obsoletos e sisudos militares - discursa sobre a importância de associar a campanha do Não à anarquia, à violência e, principalmente, embora sem pronunciar a palavra, ao comunismo. Para, em seguida, destacar a segurança da manutenção do já estabelecido e do capitalismo, regime que "proporciona a qualquer um a chance de melhorar de vida. Mas atenção, a qualquer um. Não a todos". Segundo ele, é por causa da esperança de vir a ser este qualquer um que, no capitalismo, a maior parte das pessoas não se revoltam com as desigualdades, que aprendem a imaginar que só prejudicam aqueles que não se esforçam o baste para ser este "qualquer um".
O outro filme é argentino. Dirigido por Benjamim Ávila, Infâncias Clandestinas aborda os efeitos da ditadura argentina, que durou de 1976 até 1983 e é considerada a mais sangrenta do período. Ao contrário dos muitos filmes argentinos que tratam do assunto, o longa também busca inovar ao optar por, ao invés de mirar o conflito a partir do ponto de vista dos adultos, envolvidos ou não com a resistência e com a luta armada, questionar quais os efeitos do exílio, da clandestinidade, do medo e da coragem para os filhos dos militantes de esquerda, crianças que não escolheram a vida que levam.
Embora lembre muito o brasileiro O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburguer, se diferencia por colocar as crianças no centro da ação, em risco direto. Enquanto no primeiro o filho é deixado pelos pais guerrilheiros em suposta segurança, neste, as crianças seguem junto a família, ouvindo desde cedo que mais vale morrer lutando pela liberdade do que viver escravo de um sistema sanguinolento.
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