sexta-feira, janeiro 15, 2010

Isto também é uma vergonha?

O “anjo pornográfico” Nelson Rodrigues sustentava que duas características da segunda metade do século 20 para frente eram o desaparecimento das escarradeiras de louça das salas de visita e repartições públicas e a ascenção dos idiotas sem modéstia, aqueles que, ao contrário dos antecessores de sua espécie - que não exalavam um suspiro -, perderam a humildade de vários milênios e passaram a vestir as melhores casacas e receber as maiores condecorações.

“Antigamente, o silêncio era dos imbecis; hoje, são os melhores que emudecem. O grito, a ênfase, o gesto, o punho cerrado, estão com os idiotas de ambos os sexos”, anotou o dramaturgo. Se estivesse vivo, Nelson Rodrigues talvez acrescentasse que, não satisfeitos com gritar a plenos pulmões, alguns idiotas decidiram se apossar de alguns veículos de comunicação, essas potentes caixas de ressonância.

Nos últimos dias, os exemplos de bom jornalismo imodesto têm se multiplicado. Primeiro foi o âncora Boris Casoy que, no Jornal da Band, destilou seu preconceito de classe contra os lixeiros ao classificar como uma merda a idéia de algum editor de colocar dois garis, vassouras em punho, desejando um feliz ano-novo aos telespectadores. “Que merda...Dois lixeiros...o mais baixo da escala de trabalho”.


Em seguida veio o Jornal Nacional. Por alguma razão, o jornal global decidiu que deveria dedicar cerca de 9 minutos à memória da jovem Yumi Faraci, umas das vítimas dos deslizamentos de terra ocorridos em Angra dos Reis (RJ). Na ocasião, 29 corpos já haviam sido encontrados e muitas pessoas seguiam desaparecidas. A reportagem inicial sobre Yumi, de 2 minutos e 24 segundos, humaniza o frio registro da tragédia, mostrando o rosto e a história de uma das vítimas. A partir daí, contudo, o que se assiste é uma questionável entrevista de mais de seis minutos com os pais da jovem, amigos do repórter Tino Marcos.

No que pese o drama da família e a dimensão da tragédia, alguns telespectadores terão se questionado (como fizeram alguns amigos meus, entre eles alguns jornalistas) sobre o propósito de tal matéria. Alguns, como eu, acharam um desrespeito com outras vítimas cujos parentes não têm amigos repórteres. Além disso, ao optar por entrevistar os pais da garota em meio a dor, Marcos não poderia se furtar a fazer perguntas a respeito da situação da pousada Sankay, construída pelos pais da garota no sopé de um morro que, agora, muitos especialistas dizem que já emitia sinais de que viria abaixo. A pousada estava devidamente autorizada para funcionar naquele local? Quem autorizou?

Eu, no lugar de Marcos, talvez não tivesse coragem de perguntar isso a amigos que acabaram de perder a filha. Por isso mesmo, não realizaria tal entrevista já que essas sim são as perguntas que ajudariam os telespectadores a entenderem as causas de desgraças semelhantes a que atingiu a família de Yumi e das demais pessoas que passavam a noite na pousada. E que, pior, continuarão acontecendo. É a velha discussão: o que é interesse do público e o que é de interesse público? A qual dos dois o jornalismo deve procurar atender?


Mas os bons exemplos não ficaram por aí. E, a meu ver, o mais perfeito deles foi dado no último dia 8, pelo blog do Noblat. Neste caso, mais que uma opção editorial controversa, o episódio suscitou um questionamento sobre a ética jornalística. Alheio ao que prescrevem todos os manuais de jornalismo, o repórter Severino Motta mentiu para conseguir uma informação. E, pior, o que mais chama a atenção é essa mentira ter sido confessada em público sem qualquer mea-culpa.

Dilma emagrece em spa no Rio Grande do Sul
“[…]
Dilma 2010 - mais magra e elegante - fará sua estréia na próxima segunda-feira de volta ao trabalho. Ela está internada desde o final de dezembro no “Kurotel – Centro de Longevidade e SPA”, em Gramado, no Rio Grande do Sul. Há pouco, o repórter deste blog, Severino Motta, falou com ela. Seu relato:
"Liguei na recepção do Kurotel e disse que precisava passar uma mensagem da ministra Erenice Guerra para a ministra Dilma Rousseff. O atendente falou "Ok" e transferiu a ligação. Dilma atendeu de imediato.
Eu - Ministra...
Dilma - Sim. Quem fala?
Eu - É Severino Motta, do Blog do Noblat. Estou ligando pois estamos preocupados com sua saúde. Gostaria de saber como a senhora está...
Dilma - Não faça isso. Não ligue dizendo que é urgente. Eu estou descansando. Que coisa... Não faça isso.
Eu - Sim ministra, mas só queria saber...
Dilma - Não faça isso. Até logo, viu?
A preocupação do blog com a saúde da ministra fazia sentido.”
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Pois é. A preocupação do blog com a saúde fazia tanto sentido que a ética jornalística deixou de fazer sentido. Não bastava o jornalista ligar e perguntar pela ministra para, de acordo com a resposta do atendente, ter ou não a confirmação de que a ministra de fato estava no spa? Aliás, a menos que as despesas tenham sido pagas com dinheiro público, que interesse há para o cidadão se a ministra estava ou não em um spa durante suas férias? Será um sintoma do contágio do chamado jornalismo político pelo jornalismo marrom-glacê de celebridades?
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Mais um exemplo? Pode ser o extraído da revisto IstoÉ desta semana. O corpo de uma modelo é encontrado carbonizado numa lixeira, nos Estados Unidos. Fato. Ocorre que, hoje, com a concorrência da internet, as revistas semanais têm que usar de toda a criatividade para divulgar notícias que, na maioria das vezes, já são de conhecimento geral. E o que fez o criativo redator da notícia para superar a possível falta de interesse dos leitores de IstoÉ?
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Beleza em Cinzas
"Ela foi objeto do desejo de homens e, por que não?, de mulheres, ao posar nua em páginas de revistas e ao desfilar em passarelas. QUANTOS SONHOS ERÓTICOS SEU EXUBERANTE CORPO NÃO FREQUENTOU? Com o respeito que nos inspiram os mortos, quantos não desejaram seu corpo? Pelo que acaba de ficar dito, sabe-se já, então, que ESSE CORPO MORREU. Morreu no domingo 3 e abalou os EUA ao longo da semana, justamente pela circunstância da morte. O CORPO TÃO DESEJADO DA MODELO PAULA SLADEWSKI, 26, FOI MISTERIOSAMENTE ENCONTRADO NUMA LIXEIRA DE MIAMI. Carbonizado. HORRÍVEL. Retorcido. Só se sabe que é de Paula pelo que restou, PELO QUE RESTA DOS BONITOS OU FEIOS - A ARCADA DENTÁRIA. OS FÃS DE PAULA SE DESPEDIRAM OLHANDO UM CAIXÃO HERMETICAMENTE FECHADO" .
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Pois é. A preocupação do redator com homenagear O CORPO que tantos sonhos eróticos despertou com algo além do frio registro de seu brutal assassinato também fazia sentido. Ainda bem que os parentes da vítima não irão ler essa homenagem. Isso para não falar que o redator ainda consegue extrair uma lição moral do episódio: seja você feio ou bonito, sua arcada dentária sobreviverá a você. Só faltou ele acrescentar esperar que a modelo, enquanto viva, tenha tratado bem de sua arcada para que esta não tenha saído mal em sua última foto.
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Longe de mim chamar Marcos, Motta ou mesmo o redator da Isto É de idiotas. Não sei que tipo de pressão e necessidades os levou a tais atos, que bem podem ser vistos como “opções editoriais equivocadas”. Mas será que não havia ninguém mais em suas equipes para apontar isso? Para apontar o equívoco, a grosseria? Ou, para não deixar de citar a revista mais vendida do pais, a falta de caráter de Veja ao xingar sem cerimônias o presidente eleito pelo voto de milhares de venezuelanos, Hugo Chávez?

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