Hoje é domingo, PEDE cachimbo, e estou com pregui. De forma que faço minhas as palavras do colunista da Folha de S.Paulo, Fabrício Corsaletti, sobre um tema que já gerou muita discussão entre mim e alguns conhecidos (incluindo uma ex-namorada que serviu um cuscuz na forma de farofa alegando que aquele sim era o legítimo manjar dos deuses), sobretudo aqueles que desconhecem a iguaria paulista. Quando os assuntos que deveriam ser sérios se tornam rasteiros, a melhor coisa a fazer é buscar o significado (e o prazer) da vida nas coisas comezinhas (simples, triviais, mas, também uma coisa boa de se comer. Percebem a riqueza vocabular? Te prepara Jabour)
FABRÍCIO CORSALETTI
A história é conhecida, está em todas as apostilas dos cursinhos pré-vestibulares, mas não custa relembrá-la.
Entre os séculos 17 e 18, os tropeiros que partiam da capital em direção ao interior do Estado, a fim de desmatá-lo, povoá-lo e inaugurar McDonald's, levavam nas suas bruacas ("cada um dos sacos ou das malas rústicas de couro cru usados para transportar objetos, víveres e mercadorias sobre bestas, e que se prendem, a cada lado, nas suas cangalhas, ou vão atravessadas na traseira da sela", segundo o Houaiss) farinha de milho com galinha, feijão, miúdos de porco ou baby beef.
Durante a viagem, a farinha absorvia os sucos dos alimentos e os ingredientes se misturavam, formando um virado mais tarde batizado de cuscuz paulista (do latim "cusciusus", ou seja, aquele que tem formato de bolo). Em pouco tempo o prato ganhou fama, e Minas Gerais fez a sua versão do cozido, menos massuda e acrescida de queijo canastra, torresmo e couve.
Em 1889, o marechal Deodoro, junto com os melhores cozinheiros do país, visitou o norte da África com a campanha "Yes, Nós Temos Cuscuz". Quando a comitiva passou pelo Marrocos, o rei Baba Sali, em êxtase, pagou trezentos ducados pela receita -da qual, cerca de um ano depois, já faziam parte a linguiça de carneiro, o grão-de-bico e a semolina. Dessa vez, não apenas o adjetivo -"marroquino" e não "paulista"- foi alterado; o próprio substantivo "cuscuz" ganhou nova grafia, "couscous".
Com essa roupagem, digamos, mais francesa, o couscous (ou cuscuz) conquistou Paris e hoje pode ser apreciado em inúmeros bistrôs da Rive Gauche e da Rive Droite (margens esquerda e direita, respectivamente) e inclusive entre elas, isto é, em pleno Sena, nos restaurantes dos sofisticados "bateaux mouches".
Não conheço Nova York, mas amigos viajados me garantem que nossa invenção culinária está prestes a ganhar as ruas de Manhattan, onde o hot dog ainda é rei.
E antes que eu me esqueça: a sardinha em lata só começou a ser usada no cuscuz durante a Segunda Guerra Mundial, época de escassez de alimentos frescos, como o camarão, e de abundância de alimentos enlatados, como a sardinha, que por sua vez rareavam no período colonial, sendo portanto privilégio das classes altas etc. etc.
Tudo isso pra perguntar o seguinte: por que é tão difícil comer, fora da casa da sogra, cuscuz paulista em São Paulo e relativamente fácil comer cuscuz marroquino? Por que não existe uma Casa do Cuscuz (sem TV, por favor)? Por que o cuscuz não é vendido nas padarias e nos botecos, como coxinha, esfirra, pizza e pão na chapa? Por que não há um único livro brasileiro de fotos e/ou receitas de cuscuz (nas minhas pesquisas no Google não encontrei nada além de títulos franceses e espanhóis)?
No dia em que souber as respostas, talvez eu entenda o Brasil.