A Flip começou bem. Já a festa começou morna. Para os não-iniciados, as falas de abertura desta 10ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty foram deveras exigentes, embora não necessariamente herméticas ou pedantes.
Pelo contrário. A análise que o crítico literário, professor universitário e ficcionista Silviano Santiago fez da trajetória poética de seu conterrâneo, o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, homenageado da vez, por exemplo, foi uma verdadeira aula. Ocorre que, dado o alto nível da exposição, o pleno desfrute exigia dos ouvintes um bom repertório. Tentando acompanhar a evolução paralela do menino de Itabira e de "seu irmão mais velho, o século XX", eu boiei em vários momentos. Ponto para a literatura e o conhecimento em detrimento do oba-oba.
"Nas últimas décadas de vida do poeta, século e sistema tornam-se repressivos, tradicionais e conservadores. Voltam-se os olhos para os regimes totalitários que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial. O poeta, por sua vez, acompanhou o movimento do seu irmão mais velho, o século XX, e passou a se deleitar com a infância feliz em Itabira, ao mesmo tempo em que, no fio de alta tensão da poesia, viviam os valores rurais e patriarcais inscritos na tábua da lei mineira de família. Irmão mais velho e irmão mais novo sobrevivem no futuro do passado", viajou Santiago, esforçando-se para evidenciar a estreita vinculação da poética drummondiana às mudanças político-culturais do vertiginoso século passado, já chamado de Era dos Extremos.
"A medida que Drummond se aprofunda no inconsciente da infância, restringe-se sua preocupação com a sociedade universal. Primeiro, restringe-se ao grupo nacional a que pertence. Em seguida, à célula familiar que se responsabiliza por ele. A crise do liberalismo dos anos 1930, gerado pelos regimes revolucionários tanto de esquerda quanto de direita - cuja redenção estaria na sociedade justa do futuro - acaba por encontrar a solução prática quando o cidadão descobre sua comunidade e abandona as utopias universais autodefinindo-se um liberal. No final do século XX, a comunidade é o melhor antídoto contra qualquer pensamento revolucionário universal. Cultivamos nosso jardim e redescobrimos o bom-senso de Voltaire. A crise do liberalismo não termina pelas utopias de esquerda ou de direita, mas pela redescoberta do próprio liberalismo".
Neste momento, ao meu lado, um jovem cutuca a bela ninfeta que o acompanha e diz "vamos embora. Não estou entendendo nada. Não faço ideia sobre o que ele está falando". Ao que ela responde: "peraí que estou gostando. Estou quase entendendo", adiando os desfrute etílico-sexual do rapaz.
..."saímos em busca de nós mesmos. Mais sabidos, mais racionais, empilhamos livros, teorias, conhecimento e deixamos a ação revolucionária e transformadora do planeta para a geração seguinte. Ultimamente, com a ajuda do poeta [simbolista francês] Mallarmé, andamos redescobrindo que a carne depois de lidos todos os livros, fica triste".
Carne triste após a leitura?! Era a deixa de que o rapaz precisava para enfim convencer a menina para um passeio pelas ruas ainda semi-desertas da cidade, entregue ou à celebração literária ou à festa corintiana que se avizinhava. Saíram juntos, abraçados, praia afora enquanto eu tentava retomar o fio-da-meada.
"O sucesso de público de Drummond, a unanimidade em torno da escolha de sua obra poética como a mais significativa do modernismo brasileiro... tudo isso advém do fato de que sua poesia dramatiza de forma complexa e original a oposição e a contradição entre razão e emoção. Entre Marx e Proust, entre a revolução político e social instauradora de uma nova ordem universal e o gosto pelos valores tradicionais do clã familiar dos Andrades, seus valores sócio-econômicos e culturais. Duas linhas de forças paralelas e contraditórias", dizia Santiago no momento em que uma balzaquiana, provável professora secundarista de literatura brasileira (há muitas delas que viajam em grupos, anotam tudo que é dito e não perdem uma só palestra para ir à praia) me chamou a atenção na "pipoca" - ou seja, encostada contra a grade que separa os que pagam para se sentar e ver a apresentação por um telão daqueles que não pagam e assistem a tudo pelo mesmo telão, em pé, do lado de fora da Tenda do...Telão. Concentrada, ela sequer notou que era observada em seu exagerado aprumo de turista em "lugar chique".
"Vistos em conjunto, temos de um lado os textos poéticos que descrevem longa e minunciosamente o processo de decadência porque passa a oligarquia rural mineira em seus constantes combates com o processo de urbanização e industrialização do Brasil. Do outro, poemas que traduzem a esperança em uma frutífera radicalização social oriunda do otimismo gerado pelo movimento tenentista de 1930, otimismo este crítico da oligarquia rural, onde, paradoxalmente, se situa o clã dos Andrades. Estas duas linhas se enlaçam, se enroscam, ocasionando a principal tensão dramática da poesia de Drummond", diz o palestrante, triunfal, enquanto eu me socorro recorrendo ao conhecimento oriundo das novelas globais. Imagino que nas minas gerais de Drummond ou na Bahia de Gabriela, o "processo de decadência da oligarquia rural" não deve ter sido muito distinto.
Santiago segue mencionando ecos do mito de Robinson Crusoe na poesia drummondiana. A rebeldia do poeta contra os valores tradicionais da família oligárquica mineira, a ironia contida em versos como "os pais, primos, irmãos, avós dando-se as mãos, os mesmos bisavós, os mesmos trisavós, os mesmos tetravós, a mesma voz, o mesmo instinto, o mesmo fero exigente amor crucificante, crucificado". "Rebeldia, insubordinação e aventura revolucionária, de um lado, arrependimento, reconhecimento tardio e obediência aos valores familiares do clã de outro", conclui Santiago, seguindo adiante, indiferente aos que estivessem em busca da propagada festa paratiense ou apenas aguardando pelo show de abertura, este ano a cargo de Lenine.
"Existem pelo menos dois Drummonds. O primeiro compreendeu de maneira inigualável o tempo e os homens do presente. Teria se assustado com o trabalho sangrento que o bisturi poético faz das chagas sociais do nosso tempo. Escreve Claro Enigma (1951) e, na mesma década, passa o bastão de revezamento da crítica social ao jovem João Cabral de Mello Neto, que busca uma poesia de maior eficácia social e política. O outro está ligado aos valores do velho latifúndio. Ao assumir o discurso do patriarca, Drummond foi se esquecendo de continuar a esquadrinhar com os olhos o caminho de luz que os faróis do carro poético haviam aberto a sua frente. Passou a ficar embevecido com a paisagem antiga que lhe enviava o espelho retrovisor. Poeticamente instalado de novo no antigo sobrado mineiro de Itabira, descobre, muito acima dos mortais que, entre o sobrado e a rua há uma escada reveladora ("ponte para marcar o isolamento", conforme as palavras do próprio Drmmond)".
Na sequência veio o poeta, filósofo e letrista (ah, sim, e irmão da cantora Marina Lima, insistem em lembrar as pessoas ao meu lado, embora a pequena apresentação constante do livrinho da Flip esnobe tal informação pop) Antonio Cícero, que se limitou (não é bem este o verbo, já que ele se alongou um pouco mais que Santiago) a ler e analisar o poema A Flor e a Náusea, de Drummond. Foi bem, mas a esta altura eu ainda estava esperando as sinapses finais para concluir a assimilação da palestra anterior.
Desconfio que daqui a algum tempo, a ficha vai cair e eu vou lembrar com respeito e carinho desta noite. Por agora, o máximo que meus parcos recursos intelectuais me permitem fazer é registrar os poucos insights de Santiago que retive sobre a biografia e a poesia de Drummond e, principalmente, sobre o conturbado século passado.