sexta-feira, outubro 15, 2010

Notas sobre um velho safado

Charles Bukowski

Tempos atrás eu tentei reler Kerouack. Além do On The Road (Pé Na Estrada - que está sendo adaptado para o cinema pelo brasileiro Walter Salles), não deu. Aí então eu tentei voltar a Hermann Hesse. Também não rolou. "Quem sabe André Gide... Os Subterrâneos do Vaticano ou mesmo o Frutos da Terra", pensei? Qual o quê. Emperrei na nona ou décima página do segundo.

Há livros, autores, filmes e diretores aos quais não devemos retornar sob pena de nos desapontarmos não pela qualidade da obra, mas por ela já não nos arrebatar como no primeiro contato. Em alguns casos, óbvio, o problema é mesmo com a qualidade, já que, com o acúmulo, estabelecemos parâmetros e nos tornamos mais exigentes. Não foi isso, no entanto, o que sucedeu entre mim e os autores citados.

O que aconteceu é que, para mim, os escritores acima parecem ter perdido o viço. Tentar reler um de seus livros, mesmo um que tenha marcado minha adolescência, como O Lobo da Estepe, do Hesse, foi como almoçar com uma ex-namorada e descobrir que, apesar de bonita, sua presença já não me diz muita coisa. E há casos em que nem mesmo um encontro fortuito para verificar os efeitos do tempo que passou me interessa.

Estou certo de que, hoje, não riria tanto quanto da primeira vez que li a O Grande Mentecapto, do Fernando Sabino, ou mesmo a Feliz Ano Velho, do Marcelo Rubens Paiva. E de que os livros do hoje deputado Fernando Gabeira, que por algum tempo me inspiraram o desejo de viajar e ver o que se passava em outras terras, na melhor das hipóteses me causariam uma brutal indiferença. Justo o Gabeira que ao retornar do exílio arrebatou a uma penca de leitores jovens com suas observações a respeito da política, do regime militar, luta armada, desbunde, contracultura, drogas, sexo livre e do então incipiente movimento ambientalista que começava a ganhar corpo nos países desenvolvidos.

É inevitável. Há obras que, apesar de longevas, parecem estar cincunscrita ao públ
ico de uma determinada fase ou classe social. Não me ocorre agora exemplos de bons autores consumidos exclusivamente por jovens, mas no caso dos livros, lembro de O Apanhador no Campo dos Centeios, As Aventuras de Tom Sayer e Revolução dos Bichos e 1984 como casos cuja leitura parece ser quase que obrigatória entre adolescentes que descobrem o prazer da cultura.

Apesar de tudo isso, imagino que todos tenham ao menos um autor, um diretor, um músico ao qual podem voltar frequentemente a fim de reencontrar-se não apenas com a obra, mas com algo entre o que eram e o que se tornaram graças a um acúmulo de experiências do qual a própria obra faz parte. Para mim, este cara é Charles Bukowski (Alemanha, 1920 – EUA, 1994).

Pode até soar estranho que eu diga isso do autor de livros entitulados "Notas de Um Velho Safado", "Ereções, Ejaculações e Exibicionismo" ou "A Mulher Mais Linda da Cidade", mas é verdade. Não há nada de Hesse que eu releia com o prazer de uma frase de Bukowski como "Deus é um anzol a nossa espreita". E o bom é que como no Brasil sua obra demorou muito para ser levada a sério, desde sua morte por pneumonia, em 1994, não param de surgir novidades suas.

Comparado a Henry Miller e a Ernest Hemingway e apontado como o último autor beatnik - movimento do qual o já citado Kerouack é o simbolo máximo, formando a tríade sagrada junto a Allen Ginsberg e Willian Burroughs - Bukowski faz parecer fácil escrever. Seus textos soam autobiográficos, se amparam em muitas experiências de uma vida errática de quem teve que trabalhar como carteiro, catador de uvas e se sujeitar a toda sorte de subemprego, para mostrar o outro lado do American Way of Life.

Mesmo que muitos só percebam seu humor negro e considerem seu estilo irremediavelmente tosco, a mim Bukowski demonstra ter um olhar apurado para as questões sociais e comportamentais. Até hoje, quando leio notícias sobre algum jovem norte-americano que decidiu descarregar todo o pente de uma arma semi-automática no pático escolar, lembro de Bukowski contando o quanto ele quando criança sofria com o que apelidou de Síndrome do Pátio, primeiro sintoma do modelo de estímulo à concorrência de um contra todos que marcará a vida de uma Nação individualista e egocêntrica.

Morto aos 73 anos, na Califórnia, o velho Buck teve uma vida de muitos excessos, sempre tentando conciliar as ressacas e o relógio de ponto com a literatura e as mulheres. Escreveu quase 50 livros de crônicas, poesia e romances além de ter colaborado com jornais alternativos. Teve ao menos uma filha reconhecida. Há dois filmes inspirados em sua obra, mas nenhum é lá grande coisa: Barfly (tradução: mosca de bar), com Mickey Rourke e Faye Dunaway, e Factótum, com Matt Dilon. Bukowski parecia não se levar a sério. E por isso mesmo eu diria que, em dias como estes, isso é absolutamente imprescindível.

Nenhum comentário: