Em especial quem compartilha comigo a paixão por praias, viagens e pelo surf, caso do meu brother Carlos Leite. Não nos víamos desde que me mudei para São Paulo, há pouco mais de quatro meses. Neste meio tempo eu já retornei várias vezes à capital federal, mas ele sempre estava em meio a uma de suas expedições em busca da onda perfeita (que ele já sabe que não existe) ou então numa viagem às custas de um trabalho maluco qualquer.
Desta vez eu o avisei previamente e ele me garantiu que estaria na cidade, de forma que eu não esperava menos do que ele de fato fez, ou seja, que ele fosse me encontrar no aeroporto. E ele foi. De ônibus. E ficou lá, com sua cara de pau, me aguardando com um papelão onde se lia "seme-fosco".
"Seu analfabeto! É semi. Com i. Semifosco", eu disse enquanto o abraçava efusivamente. O bronco me pareceu mais forte. Ou então fui eu que emagreci com a correria da paulicéia desvairada.
"Não tão te dando o que comer, não, ô semifosco? Tô te achando pálido, hein, rapaz!", provocou o prego, passando um dos braços em torno do meu ombro e fingindo querer me dar um golpe. Deixei cair no chão a blusa que tirei tão logo sai do avião e pensei para que merda eu havia trazido aquele volume desnecessário. O relógio marcava 32 graus e eu tive vontade de ir ao banheiro trocar a calça por uma bermuda.
Olhei o céu enquanto caminhávamos para o ponto de ônibus e falei baixo, "depois de saber que ele está aí em cima você passa a dar um valor enorme para isso. E depois que está habituado você passa a sentir a falta quando não o vê". Leite pareceu não entender, mas riu como se estivesse chapado. Na verdade, ele me pareceu estar chapado.
A caminho da casa da minha namorada meu corpo foi acusando o efeito do sol, do ar mais puro, da claridade. Era como se cada músculo meu passasse por um descompressão. "E aí? O que veio fazer nesta terra desolada pela seca?", perguntou Leite querendo tirar uma onda ao perceber minha reação ao ritmo particular da cidade. De fato, a vegetação do Cerrado ainda não havia se recuperado da severa seca deste ano, mas bastou as primeiras chuvas cairem para o verde começar a ressurgir. E também para que as cigarras dessem o ar da sua graça. A cidade, como todos os anos, parecia pulsar no ritmo do canto das cigarras.
"Ué! Eu ainda tenho uma garota aqui", respondi. "E eu tinha quatro dias de folga e a previsão era de chuva e frio em São Paulo e litoral e, pior, sem ondas". Rimos os dois, lembrando de nossas conversas anteriores - Não queremos ser profissionais ou ases do surf. Queremos apenas nos divertir. Portanto, sol, água quente e ondas nem muito pequenas, nem muito grandes para nós. "Atualmente, de fria já me basta a rotina", completei.
Para comemorar o reencontro, assaltei duas cervejas do que seria minha própria geladeira caso ela não estivesse no que hoje é a casa da minha namorada (isso é uma outra história). Saquei da bolsa dois novos vídeos de surf (The Drifter e The September Sessions) para a minha dvdteca que permanece em Brasília junto com todos os meus livros e cds e colocamos a conversa em dia enquanto admiravamos Rob Machado, Kelly Slater, Luge Egan, Brad Gerlach e outros deslizando, entubando e voando sobre ondas de sonho na Indonésia. E enquanto isso Leite ia me pondo a par dos últimos fatos.
Quem vai ser pai. Quem vai ser mãe. Quem está saindo com quem. As últimas piadas e a vergonha decorrente de a candidata ao governo Weslian Roriz ter passado para o segundo turno. O medo de quem ocupa cargo comissionado na esfera federal de perder a boquinha. As festas que aconteceriam no sábado, uma no Conic (Frenéticas), outra na Velvet (Bizarre Love Triangle). Os shows. E, principalmente, suas últimas e próximas viagens. E então seus olhos brilharam, seu rosto se transfigurou e ele deu um salto. "Véio! Você tem que quer meu quiver novo", agitou-se. "Quiver?!?! Você agora tem um quiver?", ironizei. "YEAH! Euagoratenhoumquiver. E vou testar meus foguetinhos na semana que vem, em Floripa. Uma semana pegando onda em Florianópolis".
Rapaz, é em momentos como este que você entende o sentido do termo inveja incontida. Senti um despeito profundo por aquele prego, aquele calango do Cerrado a quem eu mesmo havia incentivado a começar a pegar onda e que agora dizia ter não uma ou duas pranchas, mas sim várias. "Uma para cada tipo de onda que eu espero encontrar em Floripa e no litoral Norte de São Paulo, onde devo passar outra semana", arrematou Leite já me puxando pelo braço para irmos a sua casa ver as pranchas novas, esculpidas por um shaper carioca para quem Leite fez o servicinho de contrabandear parte da fibra usada na confecção de pranchas.
As pranchas de fato eram bacanas. Quatro triquilhas brancas, variando entre uma 5'11 e uma 6'4, sendo duas fish e duas round-pin. Dignas de serem levadas para a cama durante a noite. A beleza da proporcionalidade entre a espessura, a largura e as curvas me fez sentir algo como despeito. Pra que diachos esse cara precisa de cinco pranchas (pois ele mantinha a antiga, que chamava de Geniosa) morando em Brasília se eu que estou vivendo a pouco mais de 80 quilômetros da praia não peguei onda uma única vez nestes últimos meses.
E, então, algo clareou a minha frente. Dei-me conta de algo que ainda não havia notado, algo inexorável: eu já não surfava há pelo menos oito ou nove meses. Sendo que, há quatro meses, esta tinha sido uma das razões de maior peso na hora de aceitar me transferir para São Paulo. Desde então, nem surf, nem skate, nem academia, nem estudo, nem nada que não trabalho. Além disso, tirando meu companheiro de apartamento, vi muito pouco meus amigos de São Paulo. A maior parte do tempo, ou quase todo ele, eu passei foi trabalhando. De forma que devo ter olhado para Carlos Leite com uma expressão de desalento.
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Fiquei mais uma meia hora conversando com Leite sobre sua ida para Floripa na semana que vem e então voltei pra casa da minha namorada. Voltei a pé, pensando em todas aquelas pessoas que as cinco e meia da tarde faziam cooper ou uma caminhada após um provável dia de trabalho. Liguei para minha namorada, pedi (sem dar muita bandeira) para que não demorasse e sugeri um cinema para mais tarde. Enviei um e-mail confirmando minha presença no futebol de todos os sábados. E então sai para correr em meio à sinfonia das cigarras. O resto da história se resume a uma personagem refletindo durante os três dias seguintes, mas para bom entendedor...a parábola do surfista prego brasiliense ajuda a entender porque se diz que a onda do vizinho nos parece sempre mais verde e tubular. Mesmo que ela esteja quebrando em meio ao Planalto Central.
Um comentário:
Minhas cervejas! Ora, ora!
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