quinta-feira, março 03, 2011

Açougue Cultural

 
O que há em comum entre o alemão Hermann Hesse, o "bruxo do Cosme Velho" Machado de Assis, o mineiro Fernando Sabino e o português José Saramago além do fato de serem escritores e estarem mortos?

Antes, deixem-me aproveitar para explicar um possível mal-entendido. Os três amigos que leem com alguma regularidade as besteiras que escrevo provavelmente lembram quem de fato eu sou, ou seja, minha origem caiçara/estudante de escola pública/por muito tempo subempregado e, portanto, duro. Já alguns visitantes que chegarem a esta página semifosca ao pesquisar no google um termo qualquer podem se enganar ao ver fotos de viagens e menções a tantos filmes, livros e, principalmente, shows. Não, não sou playboy. Talvez a avidez por informação seja justamente uma compensação à falta da mesma durante boa parte da minha adolescência, quando não havia MTV, internet, tv a cabo e nem a quantidade de títulos de revistas existentes hoje.

A (minha?) verdade é que, por sorte, destino, vocação ou esforço, tornei-me "um espectador privilegiado" de coisas agradáveis que, para a maioria, estão associadas ao "dolce far niente" pequeno burguês. Agora, se me considero privilegiado é não apenas porque esse usufruto cultural POSSIBILITA que eu me constitua como alguém melhor (não que o faça), mas principalmente porque o custo tem sido, digamos, mínimo e acessível.

Fui de graça a maioria dos shows que comentei aqui. Vou ao cinema de preferência em dias e horários promocionais. Exposições quase sempre são gratuitas. As viagens são feitas no esquema mochilão-albergue. Tirando os lançamentos, os livros são comprados  ou trocados em sebos. Se antes os jornais já traziam parte da agenda cultural sem grande preocupação com valores, atualmente, sites como o Catraca Livre indicam programas a custo zero ou quase.
 
O que quero dizer é que para desfrutar da cultura, disposição e informação são mais importantes que grana. Lógico que sempre é preciso ter alguma pataca no bolso, nem que seja a do busão, mas cansei de ver gente reclamando do preço do ingresso de uma porcaria de peça com um global qualquer enquanto uma Denise Stoklos se apresentava praticamente de graça em uma pequena e modesta sala vazia (aliás, neste sábado ela se apresenta no Auditório da Reitoria da UFMG, Campus Pampulha, em Belo Horizonte. Preço? Míseros R$ 10).

Em Brasília, pouca gente já foi ao teatro Espaço Cena, na 205 Norte. Em Santos, muitos conhecidos jamais assistiram a um único filme no Cine Arte Posto 4, cujo ingresso, da última vez que lá estive, era R$3. Em São Paulo, todo dia tem ao menos um show-peça-debate-exposição em um dos vários Sesc espalhados pela cidade e, ainda assim, tem quem reclame que não dá para ir ao teatro porque a peça com a boazuda global da vez custa R$ 60. Com o ingresso de um mega-show internacional eu banco a entrada para shows de boas bandas brasilienses durante os finais de semana de um mês inteiro e ainda deve sobrar para umas duas cervejinhas. Às vezes o show internacional é imprescindível, mas a vida é assim, feita de opções.

E o que tem tudo isso a ver com Hesse, Assis, Sabino e Saramago? É que, mesmo mortos, eles neste momento estão ao pé da minha cama, aguardando minha disponibilidade. Prova incontestável de que, normalmente, o interesse por cultura cria ele próprio as condições para se satisfazer. Basta estar atento.

Ia eu domingão a tarde caminhando pela W3 Norte quando, ao passar por um ponto de ônibus, algo me chama a atenção. Estanco, dou um passo atrás, volto a olhar com mais atenção e confirmo que há ali, sobre uma pilha de livros dispostos numa prateleira, um exemplar de Demian, de Hermann Hesse. "É meu!", penso enquanto o pego e me surpreendo ao ver que, abaixo dele está um exemplar de Memórias Póstumas de Brás Cubas, do Machado de Assis. "Poxa! Hoje deve ser meu dia de sorte", concluo enquanto vasculho as outras pilhas e vou encontrando outros títulos que me interessam: A Companheira de Viagem, do Sabino; a Ilha Desconhecida, do Saramago. Tinha mais coisas, mas achei que seria avareza sair coletando tudo e não deixar nada para quem viesse depois. Só não resisto a acrescentar aos selecionados A Primeira Reportagem, romance policial infantojuvenil de Sylvio Pereira, lançado pela clássica Coleção Vagalume e o primeiro que vou ler.

Volto para casa munido de boa leitura sem ter gasto um único centavo. Quanto tempo aqueles livros estariam ali? Quantas pessoas terão parado naquele ponto e esperado pelo seu ônibus e deixado de descobrir Demian? Por outro lado, quantas pessoas já terão se beneficiado do projeto Parada Cultural - Biblioteca Popular 24 horas, criado pelo açougueiro Luiz Amorim, um agitador cultural de Brasília que aprendeu a ler aos 16 anos, e que visa estimular a leitura entre os usuários de transporte coletivo? Admito que é raro encontrar, juntos, tantos bons livros de bons autores em um único ponto já que as bibliotecas estão instaladas ao longo das avenidas W3 e L2 Norte, duas das mais importantes da capital federal. Mesmo assim, é uma iniciativa louvável e que me obriga a revisar o que escrevi: além de disposição e informação, é preciso também estar atento.  

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