quinta-feira, março 10, 2011

Um português pessimista, mas não tanto (Ou Como Era Doce O Comunista)

Os livros de José Saramago não me entusiasmam. Não adianta. Fiz várias tentativas - agora mesmo, acabo de ler O Conto da Ilha Desconhecida, uma obra menor (tem apenas 62 páginas) do português premiado com o Nobel de literatura - mas não rola. Saramago definitivamente não faz minha cabeça. Mesmo assim, sempre admirei sua personalidade pública, ou como ele preferia dizer, o cidadão Saramago, que achava mais importante falar do mundo, ou melhor, sobre a situação das coisas no mundo, do que sobre seus livros.

Por suas entrevistas, Saramago sempre me pareceu uma figura interessante, sensível aos problemas sociais e crítico ferrenho das convenções modernas. Em um país profundamente católico, ele se proclamava ateu e chocou com o Evangelho Segundo Jesus Cristo. Mesmo após o proclamado "fim da História e das utopias", continuou dizendo-se comunista. Apoiava o MST. Confesso, contudo, que eu fazia dele uma imagem muito diferente da revelada no excelente documentário José e Pilar, em cartaz no cine Liberty, em Brasília, há dois meses e meio e ainda atraindo público.

Mais que registrar o processo criador (no caso, do seu último livro, A Viagem do Elefante) ou investigar as bases da obra de Saramago, o diretor português Miguel Gonçalves Mendes optou por registrar a intimidade do escritor com sua mulher, a jornalista espanhola Pilar del Rio. Acertou em cheio. Além de apresentar um Saramago apaixonado, afetuoso, divertido e bem-disposto já na casa dos 85 anos, o filme revela, principalmente ao público brasileiro, a interessante personagem que é Pilar, 28 anos mais jovem e igualmente apaixonada.

Já pelo cartaz do filme é possível antever o que virá. "Ele tem idéias para romances. Ela tem idéias para a vida". De forma que Saramago, que só aos 60 anos decidiu se dedicar exclusivamente à literatura, nos apresenta suas ácidas considerações sobre a inexistência de Deus, a morte, a política e a humanidade que, segundo ele, caminha para o abismo trucidando-se entre si enquanto o momento final não chega. Já a Pilar cabe o contato com o mundo concreto e a responsabilidade de tentar organizar minimamente as muitas solicitações feitas ao único autor de lingua portuguesa a ganhar o Nobel. Não à toa, alguns dos melhores momentos do filme cabem a Pilar, como a absurda e constrangedora entrevista concedida a um repórter português.

Em Saramago, razão de ser do documentário, o que mais me impressionou foi ver a falta de pudor com que ele revelava seus sentimentos diante não só das câmeras, mas de toda uma platéia de intelectuais e jornalistas convidados para o lançamento mundial, em São Paulo, de seu último livro. "Se há algo que eu posso dizer hoje, aos 86 anos, é que se tivesse morrido sem conhecer Pilar [aos 62], teria morrido muito mais velho que sou agora". Não era o tipo de coisa que eu imaginava ouvir do penúltimo comunista sobre a Terra (o último é o arquiteto Oscar Niemeyer). Em outro momento, ele demonstra como encerrar uma discussão conjugal antes que seja condenado a dormir no sofá por criticar o entusiasmo acrítico de Pilar por Hillary Clinton.

O filme não precisaria ser tão longo. Cenas como a visita de um grupo de jovens italianos à casa do escritor, na ilha de Lanzarote, ou mesmo a sucessão de entra e sai de aviões e coletivas de imprensa ao redor do mundo poderiam ter sido condensadas para não cansar o público. Por outro lado, faltou explorar um pouco mais as convicções políticas de Saramago, que, para alguém que não o conheça mas, eventualmente, assista ao filme, pode parecer o bom velhinho sereno e paciente (Não tenha pressa. Não perca tempo era uma de suas máximas). Mesmo assim, o filme é ótimo, prende e emociona. Graças, é lógico, à magnitude e ao carisma do casal. Fora que, sem pieguice, sem derramamento barato e sem forçar na mão, a vida em comum de Saramago e Pilar nos inspira a desejar semelhante companheirismo e cumplicidade.

Por isso, embora continue não curtindo sua escrita, acho mesmo que o português era mestre. E por tornar o mundo mais rico e interessante, só posso desejar-lhe, a ele que se chateava com a idéia da morte por associá-la ao "já não estar mais", que esteja bem, esteja lá em que "sítio" esteja. Ou que não esteja.

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