Dois textos escritos em janeiro de 2008 sobre um pequeno paraíso encravado em meio à floresta amazônica
(fotos: Pousada Uacari - http://www.uakarilodge.com.br/)
(fotos: Pousada Uacari - http://www.uakarilodge.com.br/)
Reserva ecológica é exemplo de como conciliar preservação com desenvolvimento
Em Mamirauá, avistar uma onça é um bom sinal. Não por crendice popular, mas porque os moradores da reserva localizada próxima a Tefé (AM) sabem que se o mamífero que ocupa o topo da escala alimentar está rondando a região é porque tem o que comer. Uma evidência de que a fauna se recompôs. "As onças que ninguém mais via, [agora] tem até demais", brinca Afonso Silva Carvalho, que desde 1990 atua como assistente da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá.
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Segundo a diretora do instituto responsável pela gestão da reserva, Ana Rita Alves, ao longo dos últimos 15 anos o estoque do pirarucu - um dos maiores peixes de água doce do mundo, podendo atingir até 3 metros de comprimento - também aumentou nos lagos da reserva. Graças aos planos de manejo elaborados por pesquisadores do instituto em parceria com os moradores da reserva, garante Ana Rita.
"Em 1993, o tamanho médio do pirarucu pescado era de 1 metro e 40 centímetros. Em 2004, ultrapassamos 1 metro e 60 centímetros. É com base nessas informações que definimos o plano de manejo e decidimos que peixes podem ser pescados e em que época" diz Ana Rita. Este ano, foram cerca de 370 peixes, ou 30% dos pirarucus adultos encontrados nos lagos. "Também temos trabalhos para preservar as tartarugas, cujo estoque estava praticamente a zero em 1996. Estimulamos as comunidades a não apanhar os ovos depositados nas praias de várzeas", completa.
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Criada em 1990 e localizada entre os rios Solimões, Japurá e Auatí-Parará, a três horas de lancha de Tefé (AM), Mamirauá foi a primeira reserva de desenvolvimento sustentável a ser criada no país. A categoria só passou a integrar o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) em 2000. Antes, o biólogo José Márcio Ayres já havia conseguido que a área fosse reconhecida como uma estação ecológica.
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Ao chegar à região no início da década de 1980, Ayres se empenhou em proteger a área que abrigava seu objeto de estudo, o macaco uacari-branco (Cacajao calvus calvus). Não tardou a perceber que a conservação da biodiversidade passa por questões como a melhoria da qualidade de vida das populações carentes. Quem acompanhou o biólogo na jornada de criar Mamirauá lembra que ele defendia que, sem conscientizar as pessoas e proporcionar alternativas econômicas para que conservem o ambiente, ele jamais será preservado.
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"O modelo de Mamirauá é inovador porque foi proposto para unidades de conservação de importância biológica, com a presença continuada da população. Já numa estação ecológica você preserva o ambiente, mas retira a população. E não há lógica em retirar pessoas que há tempos estão assentadas nessas áreas ", diz Ana Rita, alegando que a possibilidade de aplicar o modelo em outras áreas rurais da Amazônia e outros biomas é outra inovação.
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A reserva ocupa uma área pertencente ao estado do Amazonas. Para percorrer de barco seu 1.124 milhão de hectares são necessários de cinco a seis dias. Um convênio com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Sustentável permite que o Instituto Mamirauá realize pesquisas no local e na reserva contígua, Amanã, de 2.313 milhões de hectares. "É importante termos as unidades de conservação, mas é ainda mais importante não tê-las apenas no papel. Executar um trabalho para que essas áreas cumpram realmente suas finalidades".
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O Instituto Mamirauá foi criado em 1999 para dar continuidade à implementação da reserva. Além de receber recursos do Ministério da Ciência e Tecnologia, o instituto permite que cada pesquisador autorizado a trabalhar no local capte onde for possível os recursos necessários aos seus estudos. Ana Rita garante que quando uma pesquisa vai ser realizada, a população é consultada. "Temos casos de pesquisadores que não puderam continuar os estudos porque as comunidades não aceitaram".
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Segundo Ana Rita, o objetivo do Instituto Mamirauá é preservar a natureza assegurando, por meio de alternativas de trabalho para as comunidades, a melhoria da qualidade de vida da população, valorizando, conservando e aperfeiçoando as técnicas de manejo já existentes. "Os conhecimentos tradicional e científico interagem em busca da forma mais adequada de utilizar os recursos naturais disponíveis. É um trabalho entre a ciência para a conservação com respeito à cultura local".
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Visando a melhoria da qualidade de vida dos moradores, o Instituto Mamirauá desenvolve ações de educação ambiental, saúde, comunicação, moradia, entre outras iniciativas de organização e articulação comunitária. "Temos convênio para projetos como o Ministério da Saúde, mantemos uma escola flutuante de educação ambiental onde realizamos cursos para parteiras e enfermeiros".
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À importância geopolítica e ao tamanho da Amazônia, Ana Rita Pereira Alves contrapõem ameaças e problemas "superlativos". "Nosso objetivo é preservar essa riqueza e tentar solucionar parte dos problemas. A região pede respostas domésticas, mas precisa da mobilização nacional para alcançar os objetivos de preservação da floresta".
Ecoturismo e manejo sustentável permitem a moradores ajudar a conservar reserva
Além da satisfação dos que se hospedaram em uma das dez suítes flutuantes construídas no interior da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, a cerca de três horas de barco de Tefé (AM), o livro de recados sobre o balcão da Pousada Uacari registra o sucesso da iniciativa de implantar o ecoturismo como alternativa econômica para os moradores da unidade de conservação.
Gerenciada por integrantes da própria comunidade, a pousada incentiva as pessoas a conservar os recursos naturais da área. Os lucros, segundo a diretora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Ana Rita Alves, são divididos entre o sistema comunitário de vigilância e as comunidades locais. “Recebemos pedidos de centenas de turistas, mas isso iria impactar o ambiente. Só podemos receber 20 hóspedes por vez”, diz Ana Rita.
A população de Mamirauá é de cerca de 11 mil moradores e usuários (moradores de comunidades próximas), distribuídos em 218 localidades, expressão empregada para abranger desde as comunidades até sítios com apenas duas casas. As localidades são organizadas em 19 setores que agrupam uma série de comunidades. Doze deles contam com representantes eleitos pela própria comunidade para servir de elo com o instituto.
“Nós os visitamos a fim de mantê-los informados sobre os trabalhos que estão sendo executados. Eles, por sua vez, conversam com a comunidade e, a cada dois meses, realizamos uma reunião com as lideranças para tomar as decisões”, explica Ana Rita. Anualmente, os moradores elegem em assembléia geral as prioridades para o ano seguinte. “Apesar de procurarmos orientar essa votação, muitas vezes pontos que achamos importantes não são aprovados”.
Como o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá também atua na Reserva de Amanã, contígua a Mamirauá, Ana Rita calcula que o trabalho do instituto beneficia até 150 mil pessoas dos municípios próximos. “Nossos programas de saúde, científicos e de educação ambiental tem influência em municípios que fiquem num raio de 20 quilômetros da reserva”.
Além dos programas de ecoturismo e dos planos de manejo para pesca e exploração madeireira, o Instituto Mamirauá busca incentivar a agricultura e o artesanato, atividade que estava quase esquecida.
Ana Rita já comemora alguns bons resultados. O desmatamento na reserva vem diminuindo, já que os moradores estão usando as áreas de capoeira para o replantio. A mortalidade infantil caiu de 87 óbitos por mil nascimentos, em 1994, para 23 a cada mil. A renda domiciliar cresceu, acompanhando a valorização dos produtos locais, como a madeira que de R$ 17,50 o metro cúbico, chegou aos atuais R$ 62 quando certificada. Com o aumento da renda, os moradores puderam adquirir telas contra mosquitos paras suas casas, o que ajudou a reduzir a inciência dos casos de malária.
Ana Rita diz que a organização comunitária é o trabalho mais árduo. E lembra dos percalços. “Quando o projeto Mamirauá começou, as pessoas o rejeitavam. Imagina, estávamos fechando uma área até então aberta para todos coletarem seus recursos. Isso causou muitos conflitos de interesses. Gente que não pôde mais explorar a madeira, pescar de forma predatória. Começaram a divulgar que só tinha estrangeiro em Mamirauá. Que transportávamos de helicópteros peixe-boi para a Bélgica”, lembra a diretora.
Segundo Ana Rita, aos poucos, a percepção das pessoas foi mudando. “Percebendo que os recursos naturais estavam se esgotando, que quase já não havia mais peixes, as comunidades que não estavam no projeto passaram a nos procurar e pedir para atuarmos em suas localidades”.
Para se prevenir contra eventuais acusações quanto à atuação, a organização aposta na comunicação. “Nossa principal preocupação é divulgar nossas atividades. E todo pesquisador estrangeiro que apresenta uma proposta de pesquisa tem de, antes, ser autorizado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico [Cnpq]. Todos os pesquisadores estrangeiros que atuam na Mamirauá são autorizados a trabalhar”, explica a diretora administrativa Selma Freitas.
Ainda há queixas, lógico. Principalmente entre quem está fora da reserva, como reconhecem os administradores. Mas também entre quem ajuda a preservar a área.
“Precisamos de apoio para fiscalizar a área”, pede o assistente Afonso Silva Carvalho. “Em 1990, quando estávamos fazendo o zoneamento da reserva, havia madeireiros, pescadores, comerciantes. Estavam destruindo a reserva. Hoje, está um pouco melhor. Não foi 100%, mas a qualidade de vida de cada um melhorou, digamos, 60%. Ainda vem muito pescador com redes, mas pelo menos os grandes barcos de pesca deixaram de entrar na área” diz Carvalho, admitindo que há entre os próprios habitantes da reserva quem não respeite os planos de manejo.
Já o guarda-parques Arismar Cavalcante Martins se sente inseguro para impedir os abusos. Há apenas dois guardas devidamente registrados para cuidar do 1.124 milhão hectares da reserva. Ganham apenas R$ 400 e contam com a ajuda de 16 agentes ambientais que recebem R$ 20 por dia de trabalho.
Arismar diz que o trabalho é perigoso. “No dia-a-dia, a gente enfrenta os invasores que vêm para levar o pirarucu. Eles são violentos e muitas vezes reagem contra a fiscalização. Não temos recursos para cuidar da nossa área. E não temos direito de usar armas, mesmo nosso trabalho sendo muito perigoso”.
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