quinta-feira, março 24, 2011

Sangue e Porrada no Café da Manhã

MÍDIA
Ferrou-se.

Dia destes, a Ana Maria Braga entrevistava o lutador Anderson Silva enquanto exibia, as 8h30, cenas da luta em que o cara derruba um adversário, o também brasileiro Vitor Belfort, com um violento chute no queixo. A cena é brutal. Chute colocado, rival no chão, Silva ainda desfere dois murros na cara de Belfort antes que o juiz interceda. Considerado "a luta do século", o embate pelo cinturão de campeão peso-médio do Ultimate Fighting Championship (UFC) atingiu grande audiência mundial.

A revista Trip deste mês traz como uma das três opções de capa uma foto do atual campeão do UFC na categoria peso-pena, o também brasileiro José Aldo Júnior. A entrevista foi gravada em uma academia carioca onde, segundo o repórter, alguns alunos tentavam imitar o chute frontal com que Silva derrubou Belfort. O jornalista, infelizmente, não informa em quem os aspiras praticavam o golpe.

Desde a segunda-feira, a Rede Record está exibindo uma série de matérias sobre os "milhares" de brasileiros que treinam MMA, a chamada artes marciais mistas, muitos deles sonhando em se tornar o próximo Anderson Silva. Na terça-feira, eram pouco mais de oito da noite quando um sujeito com a cara toda machucada e uma orelha que mais parece uma couve-flor revelou ter ganhado US$ 300 mil em sua última luta nos Estados Unidos. E este é o tom: "brasileiros fazem fama e ganham muito dinheiro...e o jornal mostra como o Brasil é bom no ringue".

Uma revistas semanal de grande circulação nacional publicou com destaque em capa uma matéria sobre os lutadores de Vale Tudo. O portal IG este fim de semana exibia logo na home um ensaio com duas "musas do MMA".

A impressão é que a prática parece ter sido elevada à condição de esporte das multidões. O que, com ajuda da mídia, pode estar prestes a acontecer. No Orkut, uma comunidade como "Um Soco Vale + Que Mil Palavras" já tem 126.859 participantes. Doze vezes mais usuários que os reunidos na maior comunidade dedicada a Portuguesa de Desportos, a Lusa. Gente que discute sutilezas como "Qual o Melhor Lugar para se Acertar Um Soco??????", assim, de forma bem enfática.

"no nariz brother, pra quebrar logo, ai no decorrer da luta tu acerta outro só de raspão, que a garapa escorre de novo!!!", recomenda um internauta. "no queixo é foda...um dia levei um do professor vi ate estrela", alerta outro, sem revelar se continuou frequentando as aulas do mestre. "uma porrada no saco doi pra caralho", atesta um provável eunuco, menos malvado que um que sugere, sem pudor algum, que se soque o pomo de adão do adversário. Imagino que um golpe deste possa matar por asfixia.

Longe de mim fomentar preconceito contra quem curte um tatame. Por décadas, o senso comum via os surfistas quase como autistas (alguns são, mas há também alguns deles entre os jornalistas, advogados e em todas as outras atividades humanas). Skatistas já foram perseguidos e proibidos de praticar seu esporte, assim como os capoeiristas. Os pobres milionários jogadores de futebol até hoje não conseguiram superar a pecha de "ingnorantes" (sim, há os que são), mesmo o esporte já tendo produzido atletas como Sócrates, Raí, Leonardo e Kaká, para ficar apenas nos exemplos brasileiros. Eu próprio tenho vontade de treinar Krav Magá e só não o faço, ainda, por falta de tempo e, talvez, de disciplina, a mesma disciplina que, quero crer, a prática esportiva exige e aprimora.

Agora, sendo franco, quando penso em treinar uma luta não é porque acho a atividade desafiadora ou bonita do ponto de vista "estético", mas sim porque, da mesma forma que um país se sente compelido a adquirir armas mais poderosas quando seu vizinho reaparelha suas Forças Armadas, eu me sinto forçado a, se necessário, saber me defender de um cara cheio de testosterona a quem algum irresponsável tenha revelado o segredo do "chute do vácuo do Savamur". Portanto, me surpreende que a mesma mídia que tanto criticou a Venezuela por iniciar uma corrida armamentista na América Latina não reflita sobre o que está acontecendo nas ruas tomadas por creatina e outros suplementos vitamínicos.

A mim, que sou um ingênuo, parece complicado a mídia tentar faturar com o feito do Anderson Silva e demais brasileiros, mesmo sendo o primeiro um cara simpático, bem articulado e apresentável. Não dá para ignorar que, assim como a finalidade de uma arma é ferir, o objetivo de um lutador de Vale Tudo é "dar o sossega-leão" em seu adversário, sem muito espaço para sutilezas. Sem entrar no mérito da exibição de outras lutas violentas como o boxe, não vejo como os pais possam ensinar seus filhos que não se deve machucar os amiguinhos quando a Ana Maria Braga exibe para as famílias disfuncionais, durante o café da manhã com margarina, um adulto chutando o nariz de um sujeito já grogue. Ou com a tv mostrando um brutamontes socando a cara de outro caido e quase desfalecido. Dá para dissimular que aqueles pingos no tatame não são sangue de verdade? "Ah, mas nunca morreu ninguém". Eu tampouco sei de alguém que tenha morrido jogando sinuca e nem por isso campeonatos são exibidos na tv aberta, ainda que as casas e bares com mesas de snooker país a fora reúnam mais gente que as academias de luta livre.

Há, no Congresso Nacional, um projeto de lei tentando impedir a transmissão televisiva de lutas deste tipo. A julgar pela matilha de jovens que tenho visto na noite santista, brasiliense e paulista, concluo que isso não vai resolver o problema da violência - não falo aqui de assaltos, sequestros, latrocínios ou crimes passionais, mas do simples impulso destrutivo de medir forças. E não venham me dizer que quem treina descarrega toda sua agressividade na academia porque já pratiquei capoeira e, mesmo que durante um curto tempo, vi mais de um aluno brigando na rua desnecessariamente. Mas a proibição pode ser um sinal importante de que nossa sociedade já não comporta mais tanta agressividade. Principalmente sendo usada para vender carros e cartões de crédito. E quem quiser que vá improvisar seu próprio Clube da Luta no porão de casa, com ingresso liberado apenas para adultos que assinem um termo de responsabilidade.

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