domingo, julho 22, 2012

Desonra *



A camiseta do Pink Floyd sob o casaco de colarinho forrado ajuda, mas o que chama mesmo a atenção são as pernas de bailarina no esplendor dos 18 anos, decoradas com um microshort amarelo. Ele, fingindo prestar atenção na comparação entre Hollywood e o cinema autoral, se dá conta de que a canalhice é consequência do passar dos anos e crê que ele próprio, hoje, pode ter amanhecido mais um canalha. Como se de um dia pro outro sua existência adquirisse maior gravidade enquanto o objeto de seu desejo permanecesse o mesmo - tal qual as pernas, que lhe parecem as mesmas que já detinham sua atenção antes mesmo que ela houvesse nascido. Ele sabe que ela sabe que ele é um canalha, pois apesar da curta existência, esta é das primeiras lições que aprendem as garotas com semelhantes pernas. Todos que passam a volta deles são atraídos - por ela? pelo shorts? pela gravidade dele? - e rapidamente também concluem que ali está, de pé, mais um canalha tentando dissimular sua cafajestice com um papo cabeça qualquer. Só ele ainda resiste à dúvida: será mesmo um canalha? Ou será  apenas mais uma risível vítima masculina da natureza, que não dotou os homens do adequado mecanismo seletivo que equacione o desejo com os cabelos brancos? 


* Desonra é o título de um curto e excelente livro do escritor sul-africano J.M. Coetzee, laureado com o Prêmio Nobel de literatura em 2003 pelo conjunto de sua obra. Narra a história de um professor universitário de literatura, cinquentão e divorciado, que assiste passivamente à ruína de sua credibilidade, carreira e vida após um escandaloso caso de envolvimento seu com uma aluna virem à tona. O livro foi recentemente adaptado para o cinema, com John Malkovich interpretando o papel principal.

2 comentários:

Isabela Vieira disse...

Gente, só vendo para crer! Li o livro enquanto estava na Holanda e quase cortei os pulsos de tanta agonia! Um caso que não é um caso, um estupro que não é estupro, uma fuga que, sim, é uma fuga. Quer mais? Só no cinema!
Bjos.

Semifosco disse...

Espero que não tenha cortado os pulsos porque tinha coisas melhor a fazer na Holanda? De preferência, melhor até mesmo que o livro. Ah! O filme também é bom.