quarta-feira, julho 17, 2013

Não basta ter. É preciso ostentar




Que ligações pode haver entre o sucesso do Funk Ostentação na capital paulista e o fato da cidade responder por 71% do total de carros blindados em todo o país? 

Falhamos e, aparentemente, perdemos. Quando digo nós, me refiro aos antiquados humanistas que ainda acreditam que mais vale Ser que Ter. Falhamos em transmitir nossas boas intenções, valores e crença no ser humano. Com isso, assistimos à sucessivas gerações se rendendo em quantidades cada vez maiores ao canto da sereia do capitalismo e da publicidade, para a qual Ter é a essência e o fim mesmo do Ser. Alguns ainda resistem, é verdade, mas é preocupante ver o antigo inconformismo juvenil empacotado, etiquetado e posto à venda.  

Não que o materialismo seja algo novo, mas depois dos yuppies, dos metrosexuais, das fashion victim´s, um novo fenômeno cultural vem chamando a atenção da mídia. Trata-se do Funk Ostentação, corrente do estilo musical (Funk) que primeiro conquistou a periferia das grandes cidades brasileiras para, a partir daí, se espalhar por entre todos os estratos sociais.

Mesmo que inicialmente criticados pelas letras que ora retratavam as dificuldades e a violência da realidade periférica, ora simplesmente faziam apologia ao crime (os chamados Proibidões), alguns MCs (mestres de cerimônia, aqueles que cantam acompanhados por um DJ) hoje tocam em boates e clubes chiques aos quais, até há pouco tempo, não teriam acesso. Além disso, fazem sucesso entre playboys e patricinhas com os quais, de outra forma, só teriam contato na condição de empregados ou atendentes. 

Como no já tão analisado caso de jogadores de futebol saídos da periferia, com o sucesso "artístico" veio o aparente sucesso financeiro. E com o livre acesso à área vip, a assimilação dos valores da elite e o desejo de com ela se parecer. Há MCs surfando a crista da onda que chegam a fazer até cinco apresentações por noite, por um cachê médio de R$ 5 mil por meia hora de show. Alguns jovens recém-saídos da adolescência afirmam que, em um bom mês, cerca de R$ 200 mil pingam em suas contas. Grana automaticamente reinvestida não propriamente para assegurar um futuro tranquilo ou aprimoramento pessoal, mas sim em objetos símbolos de status que servem para exibir ao mundo todo, de forma primária, sua ascensão econômica. Pior. Como disse um MC durante o programa A Liga, da tv Bandeirantes, essa ostentação serve não só como cartão de visitas e marca pessoal, mas também como forma desses jovens se sentirem incluídos na sociedade que lhes negava o básico, como uma educação pública de qualidade.

Culturalmente, é impossível não notar o paralelo entre o Funk Ostentação e a trajetória do Rap comercial norteamericano, sucesso absoluto nas paradas musicais de todo o mundo. Criado a partir de conceitos da música jamaicana e desenvolvido nas ruas de comunidades negras dos Estados Unidos como um dos elementos da cultura hip-hop, o Rap, inicialmente, também se caracterizou por um discurso (nem sempre bem-articulado) contestatório e realista que chocava uma grande parcela do público. Com o tempo e a profissionalização, foi sendo assimilado pela classe média e pelo mercado norteamericano e, consequentemente, pelo show business mundial. A ponto de, hoje, alguns dos maiores sucessos musicais em escala global virem de artistas do gênero, tais como Jay-Z, cujo último disco, lançado há poucos dias, ocupa o topo da parada britânica, a frente do cantor inglês Rod Stewart. Um dos maiores milionários do show business, Jay-Z é casado com a cantora Beyoncé, cujos discos produziu - o que demonstra que a influência do Rap vai muito além dos artistas que, embora domesticados e ideologicamente nulos, continuam fazendo cara de mau enquanto inauguram suas próprias grifes e assinam produtos como tênis e perfumes. E cujos videoclipes cheios de mulheres, carrões, bebidas caras e ouro inspiram o Funk Ostentação. Enquanto isso, o rap brasileiro realmente relevante segue, até agora, o viés mais politizado de continuar denunciando mazelas nacionais como a desigualdade social e a violência, inclusive policial. De forma que, do ponto de vista do conteúdo, no Brasil, o Funk Ostentação está muito mais próximo do chamado Sertanejo Universitário, com "caipiras" endinheirados falando sobre carrões, bebidas e "pegar" mulher, do que do Rap ou do próprio Funk.

Exibido nessa terça-feira (16), o programa A Liga que citei acima e que motivou esta reflexão foi um dos melhores produtos telejornalísticos a que assisti nos últimos tempos. Sem fazer sensacionalismo ou apologia, mas também sem se furtar a apontar as contradições entre o discurso do Funk Ostentação e a realidade dos jovens fãs do gênero, conseguiu o que poucos conseguem: provocar questionamentos entre quem o assistiu. Tanto que aqui estou eu, escrevendo este longo post a partir de apenas uma parte das questões que me ocorreram enquanto assistia às declarações de alguns dos principais nomes do gênero. 

Na íntegra do programa postada no youtube, a maioria dos internautas que comentaram revelaram ter se identificado com o que viram. Alguns criticaram o estilo musical. Apenas um, contudo, questionou a questão da ostentação. Eu, da minha parte, gostaria de ver algum especialista se aventurar a traçar um paralelo entre a popularização do Funk Ostentação e as quase duas décadas de estabilidade e crescimento econômico brasileiro do qual esses jovens se beneficiaram direta ou indiretamente. Deve haver alguma relação, já que, há pouco tempo, seria impensável adolescentes se vangloriarem por ostentar marcas cujo único conceito embutido no logotipo é o status de possuir um produto caro e acessível a poucos (O fetiche por marcas não é novo, mas, até há pouco, elas precisavam se esforçar por embalar seus produtos em conceitos como qualidade, potência, eficácia ou liberdade).

De sobra, daria para enveredar pela tão propagada quanto artificial ascensão da nova classe média que, como os proeminentes funkeiros, se caracteriza pela despolitização e "melhoria" medida em função do acesso a bens de consumo como tvs de tela plana, carros, etc - enquanto os filhos da antiga classe média saem às ruas para pedir melhor saúde, educação e transporte público.  

Também não consigo imaginar que garotas admitissem publicamente, em cadeia nacional, que é melhor ser vista pagando mico dançando de graça em um palco, ao lado de um funkeiro,  do que estar "junto à ralé" na pista de uma boate. Ou um sujeito rir enquanto é chamado de trouxa por pagar bebidas a duas garotas que acaba de conhecer e que, juram, no fim da noite, darão um jeito de despistá-lo. Ou pais jurando que é preferível ver seus filhos de 12, 13 anos, cantando as letras de apologia a cordões de ouro, relógios caros, champagne ou whisky do que letras "violentas", como se a ostentação, em um país de tantas desigualdades, não fosse uma das brutais violências.

Que ligações haverá - se é que há - entre o sucesso do Funk Ostentação na capital paulista e o fato da cidade responder por 71% do total de carros blindados em todo o país? Será correto artistas estimularem jovens a portarem (se, por meio nem sempre lícitos, puderem ou conseguirem) jóias ou produtos caros quando o número de homicídios dolosos cresceu 18% em relação ao mesmo período de 2012 após 11 anos seguidos de queda?


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