domingo, setembro 05, 2010

"Não há censura ao teatro na Venezuela", garante dramaturgo

fotos: Ott por Gerald Martineau, The Washington Post - Passport, divulgação

Uma mulher viajando sozinha acorda ao chegar a uma estação de trem. Obrigada a desembarcar e sem saber onde está, ela busca obter informações com um soldado responsável por fiscalizar a entrada de imigrantes no país. Sem falar o idioma local, a mulher se vê enredada em uma série de mal-entendidos que culmina com sua prisão temporária, durante a qual será torturada pelo soldado e por um oficial truculento.

Que país é este de autoritarismo e desrespeito aos direitos humanos retratado na peça Passport? O dramaturgo venezuelano Gustavo Ott se apressa para esclarecer que a história apresentada na sexta-feira (3) e no sábado (4) como parte da programação do Mirada - 1º Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos (SP) não se passa na Venezuela do presidente Hugo Chávez.

"Um espectar ontem me perguntou se o país é a Venezuela e eu disse que não. Ele então quis saber se poderíamos apresentar esta peça em nosso país e eu lhe respondi que sim, que ela está em cartaz há dois anos. Quando eu lhe disse que não há censura na Venezuela ele me pareceu desapontado. Ele queria que eu dissesse que há, mas a verdade é que, no caso do teatro, mesmo do teatro político, não há censura", disse o dramaturgo à Agência Brasil.

"Creio que vivemos um processo muito interessante na Venezuela. Há, lógico, muitas críticas que podem ser feitas à administração de Chávez, mas não se pode acusá-lo de não ter sido eleito democraticamente ou de violar as liberdades individuais."

Passport foi escrita em 1988 e se inspira parcialmente em episódio vivido pelo próprio Ott que, anos antes, foi barrado ao tentar atravessar a fronteira entre a antiga Iugoslávia e a Albânia. "Eu ia para a Grécia, mas peguei um trem errado. Na Albânia não me compreendiam e não sabiam onde fica a Venezuela. Para que me compreendessem, disse que era um país vizinho ao Brasil, que eles conheciam por causa do futebol", lembra Ott, que passou um dia no posto de fronteira até ser liberado.

Após o sucesso inicial, a peça ficou anos sem ser encenada. Ott chegou a acreditar que nos anos 1990 a reflexão sobre temas como identidade nacional, imigração e desrespeito aos direitos humanos deixaria de ser necessária. A própria história, contudo, trataria de desenganá-lo. A invasão do Iraque por tropas militares norte-americanas, a prisão arbitrária e a violência contra acusados de terrorismo detidos em Abu Ghraib e o endurecimento das leis antimigração demonstraram a atualidade do texto.

"Nos anos 1980, era comum na América Latina a discussão sobre os direitos humanos, as arbitrariedades e a incomunicabilidade. A partir de 1990, os conteúdos se superficializaram e já não era tão importante fazer teatro político. Quando começou o século 21, a roda da história voltou a girar de forma dramática. Nestes dez anos vimos de tudo e vemos agora um mundo amedrontado em que a tortura deixa de ser exclusividade dos países subdesenvolvidos e no qual temas como a imigração e as identidades nacionais voltam a ser centrais", argumentou Ott.

"Passport é uma peça que se adapta aos diferentes espectadores. No Japão nos disseram que a história lembrava a relação e as diferenças entre os moradores da capital e os do interior, que em muitos casos se odeiam. Já em Israel houve quem me dissesse que ela dizia respeito à diáspora judaica. Na Venezuela, claro, pensamos que o texto fala também sobre a divisão entre uma Venezuela politicamente comprometida e outra que sente que seus direitos estão sendo cerceados", disse o dramaturgo, que trabalhou como jornalista durante 18 anos, período durante o qual escreveu sobre política, esportes, crimes, cultura e moda. Nesse mesmo período, ele se dedicou a escrever parte de suas mais de 40 obras. Três delas estão em cartaz no Brasil: Chat, em Recife (PE); Dois Amores e um Bicho, em Curitiba (PR) e Divorciadas Evangélicas e Vegetarianas, que está em cartaz em Salvador (BA) e está prestes a estrear também no Rio de Janeiro (RJ).

"Este é um momento muito importante para o teatro na Venezuela. Há um teatro comercial, dedicado ao entretenimento, que embora não reflita sobre o país, leva grandes públicos às salas. E há também um teatro independente cada dia mais político e poético. Há muitos novos autores escrevendo muito bem e estamos sendo montados no exterior", disse o dramaturgo antes de criticar o governo venezuelano por não dar o devido apoio ao teatro e à literatura. "Houve uma estratégia política para o desenvolvimento do cinema nacional que já começa a dar frutos, mas para o teatro e para a literatura não houve qualquer planejamento além de tentar massificar o acesso. Isto está começando a ser rediscutido agora", concluiu Ott.

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