terça-feira, fevereiro 01, 2011

Antes da Fama

Só Garotos - Ed. Companhia das Letras - 272 páginas 

`Só Garotos´ não chega a ser um grande livro em termos de estilo ou de conteúdo, mas quem curte arte, música e cultura pop vai encontrar passagens interessantes em meio às memórias da poeta e performer norte-americana Patti Smith sobre o tempo em que namorou e morou com o artista plástico Robert Mapplethorpe, morto em 1989, em decorrência de complicações causadas pela Aids.

Na época em que se conheceram, Patti e Mapplethorpe não passavam de dois jovens dispostos a enfrentar, sem grana, a louca e efervescente Nova York em busca do sonho de viver da arte. "Muito pobres e muito felizes", nada parecia antecipar que pouco tempo depois o casal ficaria famoso após trocar pincéis e telas pela música e pela fotografia.

Enquanto Patti se consagrou como a "poetisa do punk" ao lançar, em 1975, o disco Horses, em que sublinhou com três acordes sua poesia e visão feminista, Robert acabou se tornando um dos expoentes da pop art, causando polêmicas com suas imagens embebidas na estética sadomasoquista gay.

No livro recém-lançado no Brasil, Patti espana a poeira de suas memórias dos anos 1960 e 1970 e, sem autocomiseração, relembra as noites dormidas em abrigos, muquifos e nos locais de trabalho, a falta de grana, pouca comida e impossibilidade de frequentar lugares como museus e cinemas. E, assim, registra a importância da amizade e do amor compartilhado com Robert durante os difíceis anos de formação de ambos.


"O verão de 1968 marcou uma época de despertar físico tanto para Robert quanto para mim. Eu ainda não havia compreendido que o comportamento conflituoso de Robert estava associado a sua sexualidade. Sabia que ele gostava profundamente de mim, mas me ocorreu que havia se cansado de mim fisicamente. Em certos aspectos, senti-me traída, mas na verdade fui eu quem o traí.

Fui embora de nossa casa na Hall Street. Robert ficou arrasado, embora não conseguisse explicar o silêncio que havia nos envolvido. De qualquer forma, não foi fácil para mim me livrar do mundo que compartilhávamos. Eu não tinha certeza de aonde ir em seguida e quando Janet me ofereceu para dividirmos o sexto andar de um prédio no Lower East Side, aceitei. Esse acordo, embora doloroso para Robert, foi muito melhor do que se eu fosse morar sozinha ou com Howie.[...] Pela primeira vez eu teria meu próprio quarto para arrumar como quisesse [...]

Incapazes de romper nossos laços, continuamos a nos ver. Mesmo enquanto minha relação com Howie cresceu e depois minguou, Robert pediu que eu voltasse. Queria que voltássemos como se nada tivesse acontecido e estava disposto a perdoar, embora eu mesma não estivesse arrependida. Eu não queria voltar atrás, especialmente porque Robert ainda parecia conter um tumulto interior que ele se recusava a declarar.

No início de setembro, Robert apareceu na [livraria] Scribner´s sem avisar. [...] Disse que queria conversar comigo. Saímos da loja e paramos na esquina da 48 com Quinta Avenida. "Volta, por favor", ele disse, "senão vou embora para São Francisco". Eu não podia imaginar porque ele queria ir para lá e a explicação foi desconexa, vaga. Ele então pegou minha mão. "Vem comigo. Lá tem liberdade". "Eu já sou livre", falei.

Robert me encarou com uma intensidade desesperada. "Se você não vier, vou ficar com um cara. Vou virar homossexual", ameaçou. Simplesmente olhei para ele, sem entender nada [...] Não mostrei compaixão, o que mais tarde eu lamentaria. Fiquei observando-o ir embora e desaparecer na multidão.

[...] Quando Robert voltou de São Francisco parecia ao mesmo tempo triunfante e pertubado. Como eu suspeitava, ele havia conhecido alguém, um menino chamado Terry, mas embora estivesse experimentando seu despertar sexual, ainda esperava que pudéssemos encontrar um modo de continuar nossa relação.

[...] No meu aniversário, Robert veio me ver sozinho. Trazia um disco novo. Colocou a agulha no lado um e piscou. Sympathy for the Devil [dos Stones] soou nas caixas e nós dois começamos a dançar. "Esta é a minha música, ele disse.

Aonde tudo aquilo levaria? O que seria de nós? Essas eram nossas perguntas juvenis. E aquilo nos levou um para o outro e nos tornamos nós mesmos. [...] Alguma coisa no ar da primavera e o poder restaurador da Páscoa fez com que Robert e eu voltássemos a ficar juntos. Ambos havíamos nos entregado a outras pessoas; hesitamos e perdemos todo mundo, mas encontramos um ao outro novamente. Queríamos, ao que parecia, o que já tinhamos antes, um amante amigo para criar junto, lado a lado. Ser leal, mas livre".

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