Após passar por diversos cargos em indústrias de diferentes setores, meu pai dedicou os últimos vinte anos de sua vida profissional aos negócios de uma família empreendedora, destas tantas que ajudaram a desenvolver não apenas a cidade de Santos, mas o país. Por acaso, tanto os donos do negócio quanto seu delegado eram portugueses, mas quero crer que isso foi circunstacial. Poderiam ser espanhóis, japoneses, chineses, judeus-brasileiros e até mesmo, com menores chances, santistas.
(Engraçado, mas nas lembranças de minha infância os santistas mais bem-sucedidos eram cosipanos, estivadores ou profissionais liberais como médicos e advogados. Quando muito, tinham uma lojinha, uma papelaria ou um boteco com um único empregado também ele explorado)
Ao longo de duas décadas, meu velho dedicou ao menos doze horas diárias, seis dias por semana, ao trabalho. Não tinha horário certo para almoçar - algo que fazia no próprio local de serviço, entre uma tarefa e outra. Não tinha sábados, domingos e feriados de folga. Nas suas férias, não viajávamos. Na verdade, até meus 15 anos eu havia deixado o estado uma única vez, para ir a Minas Gerais, com minha mãe, comprar roupas para revender. O trabalho, muito, era para custear poucas coisas.
Mas voltando ao meu pai, vale dizer que ele treinava sozinho, em casa ou no trabalho, o inglês que aprendera quando jovem e que desenvolvera trabalhando a bordo de um navio mercante e, depois, já de volta ao Brasil, como tradutor técnico. Ainda hoje ele continua traduzindo para o português, em bloquinhos de recados, todo o Velho Testamento. Só para praticar o idioma que, acredito eu, domina como poucos. Não bastasse isso, há alguns anos ele encasquetou com o japonês. Em pouco tempo já conseguia identificar ideogramas e conversar um pouco com a família de japoneses dona de um lava-rápido (acho que era circunstancial e que eles poderiam ser espanhóis, japoneses, chineses, judeus-brasileiros e até mesmo, santistas). Meu pai ainda é capaz de citar, de memória, os trechos de Os Lusíadas de que mais gosta. Infelizmente, os patrões estavam pouco familiarizados com os versos do autor dos maiores épicos da língua portuguesa, de forma que meu pai jamais recebeu qualquer distinção por esta particularidade.
Além do dinheiro recebido em troca da sua força de trabalho, todo ano meu pai e os outros funcionários recebiam uma cesta de Natal como reconhecimento à dedicação aos negócios da família portuguesa. Na pesada cesta que pai trazia para casa de ônibus havia um pacote de passas, um vidro de azeitonas, uma caixa de bombons, alguns itens de que não me lembro, torrones, jujubas, um panetone barato e uma indefectível garrafa de Sidra ou Espuma de Prata. Por uns três anos, após a chegada de Collor ao poder e à abertura do mercado brasileiro ao exterior, a coisa se sofisticou e os espumantes foram provisóriamente substituídos por garrafas azuis de vinho Liebfraumilch (que, traduzindo, significa Leite de Mãe, de onde se deduz tudo. Como na época havia poucas opções nacionais à disposição do brasileiro médio, o alemão fez um grande sucesso, iniciando-nos nos segredos da enologia, o que possibilitou o advento das tábuas de queijo e cantadas envolvendo foundue. Isso, contudo, não durou muito e logo voltamos a Sidra).
A cesta devia ser dada como um verdadeiro ato de generosidade patronal, mas nunca entendi porque os chefes não entregavam aos seus funcionários o dinheiro correspondente para que os próprios comprassem o que quisessem ao invés de pagar para quem uma empresa comprasse torrones e jujubas de Natal)
Como é de conhecimento geral, a maioria das criaturas que habitam o litoral brasileiro não dão aos festejos natalinos a mesma importância que dão ao Reveillón. Por isso, se fôssemos bancar a família feliz estourando a champagne genérica para a foto, a ocasião seria a comemoração do Ano-Novo. A questão é que, na maioria das vezes, meu pai ou estava trabalhando ou estava tentando vencer o trânsito e voltar para casa após mais um dia de trabalho. De forma que as garrafas nunca eram abertas e terminavam indo parar em um armário, deitadas como se fossem vinhos caros acondicionados em uma adega climatizada. Os anos passaram, as garrafas se tornaram um acervo sem qualquer valor ou sabor, seus rótulos amarelados. Quando chegaram a vinte, meu pai se aposentou.
O paradoxo é que, ao deixar de trabalhar para a família de portugueses, meu pai viu não só a sua situação financeira, mas a própria economia do país se estabilizar. E tal como outros 30 milhões de brasileiros, conheceu a sensação de ascender um degrau que fosse na escala social. Aos iogurtes que, graças às doze horas diárias de trabalho, nunca faltaram em casa, acrescentamos ocasionais garrafas de vinho chileno e, vez ou outra, um português. Dentro da desigual ótica brasileira, acho até que já podemos nos dizer classe média. Com isso, não só os hábitos de consumo mudaram como a própria compreensão da realidade. O que não mudou foi o fato de eu, ainda hoje, ouvir vozes sussurrando conceitos ultrapassados como luta de classes e mais-valia sempre que vejo um rótulo de Sidra.
Por isso, foi como um ato de libertação, uma alforria, algo como a lei áurea, estourar, ontem, todas as garrafas que havia na casa dos meus pais e, sob o olhar consternado da minha mãe, despejar o conteúdo na privada. "Será que não é bom para temperar uma carne?", ainda tentou me impedir ela.
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